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Luciana Quintão

Banco de Alimentos em tempos de pandemia

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Luciana Quintão

Economista, é fundadora e presidente da ONG Banco de Alimentos

Há 22 anos, fundei o Banco de Alimentos Associação Civil por não me conformar com tanta pobreza no meio de tanta riqueza.

Nasci em um bairro nobre do Rio de Janeiro com uma grande favela como vizinha. Estudante de economia, percebi que aquela desigualdade social não era privilégio da cidade em que eu morava, mas algo que ocorria no Brasil inteiro.

Em 1998 já éramos uma das dez maiores economias do mundo, maiores produtores e exportadores de alimentos do planeta e, mesmo assim, existia muita fome no país.

Tínhamos 150 milhões de habitantes, e entre eles mais de 57 milhões viviam com menos de meio salário mínimo e mais de 20 milhões de pessoas eram classificadas como indigentes, aquelas que não possuem renda alguma.

Não é difícil imaginar o grau de carência, inclusive alimentar, a que estas pessoas estavam submetidas. Uma violência. Mas existia um fator agravante a este fato que chama-se desperdício de alimentos, que ocorre em toda a cadeia alimentar, fazendo com que o alimento perfeito para o consumo vá parar no lixo, causando um grande mal estar a milhões de seres humanos e enorme prejuízo ao meio ambiente.

E é aí que eu entro , como grande desobediente civil, quebrando enormes paradigmas para resgatar e entregar alimentos que seriam jogados no lixo, apenas por não terem sido vendidos, à entidades carentes que cuidavam de pessoas não economicamente ativas e em vulnerabilidade social , algo que não falta em nosso pais.

Comecei timidamente, mandei mais de 400 cartas para indústrias de alimentos, apenas na cidade de São Paulo, e recebi apenas cinco respostas desejando boa sorte.

É por isso que, no começo, tudo que distribuíamos era horti fruti, provenientes de pequenos e micro empresários que acreditaram e confiaram no nosso trabalho.

Não desisti e consegui a primeira indústria de pães que, por medo de doar, não nos deixava divulgar seu nome e, assim, precisávamos passar os pães, com todos os cuidados necessários, para embalagens neutras.

Não desisti e consegui uma grande empresa, francesa, que passou a nos doar lácteos regularmente e permitiu que divulgássemos seu nome.

Muitos dos nossos beneficiados, principalmente crianças , nunca tinham comido frutas que não fossem banana e, algumas vezes, maçã e melancia.

Oficina da ONG Banco de Alimentos no parque da Água Branca
Oficina da ONG Banco de Alimentos no parque da Água Branca - Divulgação

De conquista em conquista, chegamos em março de 2020 com 41 instituições beneficiadas que, juntas, alimentam 22,5 mil pessoas por dia. Até março de 2020 já tínhamos entregado mais de 8 milhões de kg de alimentos e complementado milhões de pratos de comida.

A pandemia chegou e, com ela, uma lupa se sobrepôs aos olhos da sociedade de uma forma que eu nunca havia presenciado. Finalmente as várias fomes foram vistas.

Começamos a ser bombardeados com fotos e textos de jornais e notícias como se não soubéssemos há tempos dessa problemática. Pessoas ficaram horrorizadas com fotos e notícias de alimentos sendo jogados fora no CEAGESP e no Cinturão Verde de são Paulo, onde já pegamos alimentos há muitos anos.

Era como se todos estivessem em uma grande sala de aula, refletindo sobre o contrassenso de haver tanta pobreza no meio de tanta riqueza. “Luciana, é verdade?”, “Isso procede?” foram perguntas que ouvi e respondi muitas vezes. Mas também ouvi “como posso ajudar?”.

O Banco de Alimentos não só não parou suas atividades como as expandiu. Se apresentou para receber cestas básicas doadas pela sociedade civil enquanto mapeava comunidades carentes com líderes comunitários que pudessem distribuir de forma adequada e ordenada milhares de cestas básicas às famílias de suas regiões.

Para tanto, alugamos galpão e caminhões, assim como muitos trabalhadores temporários, com turnos administrativos expandidos de toda a equipe. Carregamos cartões alimentações como destino de doações financeiras que recebemos para milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Nossa tradicional Colheita Urbana foi agraciada com um aumento substantivo de doações. Recebemos toneladas de batata doce, hambúrgueres, milho, café, queijos, sucos vitaminados, ervilhas, batatas congeladas e tantos outros alimentos vindos de doadores novos, como um que nos doou 60 toneladas de ovos.

Desta forma, do começo de abril até o fim de junho entregamos mais de 3 milhões de kg de alimentos, impactando mais de 700 mil pessoas entre nossas entidades cadastradas e quase 200 polos novos de distribuição via suas lideranças comunitárias.

Ou seja, em três meses de Covid-19, arrecadamos 40% de tudo que já tínhamos arrecadado até então, em mais de 20 anos de organização. Isso deixa claro que, com apoio da sociedade, os empreendedores sociais organizados em suas funções podem responder de uma forma muito mais satisfatória às comunidades.

Espero que o coronavírus tenha sido um divisor de águas para que o Brasil, que é o sétimo pais mais desigual do mundo, deixe seu hábito de criar desigualdades e invista naquilo que fortalece o país de fato: educação e justiça com desenvolvimento econômico.

Por meio de uma boa gestão dos recursos e processos públicos e privados, é possível fazer com que não existam mais 52 milhões de pessoas em insegurança alimentar, entre tantas outras fomes.

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