Aplicativo monitora mortes pelo coronavírus entre povos da floresta

Lideranças criam Alerta Indígena Covid-19, plataforma que mostra a escalada da pandemia entre população mais vulnerável da Amazônia Legal

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Ane Alencar, do Ipam, ao lado de Nayra, da Coiab, as duas entidades que criaram o Alerta Indígena - Covid-19, iniciativa finalista do Empreendedor do Ano na categoria Legado Pós-Pandemia Renato Stockler

São Paulo

Alerta Indígena Covid-19

  • Organizações Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
  • Empreendedores Ane Alencar, Francinara Soares Martins, Mário Nicácio e Martha Fellows
  • Site https://coiab.org.br/covid

A cuia de bebida já não passa de mão em mão, como é costume em rituais dos povos indígenas. Na pandemia, os ritos tradicionais que envolvem utensílios compartilhados, danças e cantos coletivos foram suspensos nas aldeias.

O medo do isolamento chega a ser maior que o da morte. “Dói o coração chegar na aldeia e ver um parente doente que se recusa a ser internado”, diz Mário Nicácio, do povo Wapichana, vice-coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

“Temos trauma de hospital, da ideia de que ninguém vai nos olhar.” Mário nasceu na comunidade de Pium, na região da Serra da Lua, porção do nordeste de Roraima onde se concentram sete aldeias Wapichana, na fronteira entre o Brasil e a Guiana.

Desde o início da pandemia, o líder indígena de 37 anos se engajou nas ações de combate ao vírus na Amazônia, coordenando barreiras sanitárias, testagem, segurança alimentar e remédios à base de plantas. “Usamos composto de quina, alho bravo e mel.”

O desafio diante da “doença desconhecida” tornou-se maior quando várias lideranças passaram a denunciar que o número de casos e mortes entre os indígenas era maior do que o divulgado pelo Ministério da Saúde.

A equipe da Coiab iniciou contagem independente, em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). “Começamos com uma planilha de Excel, com enorme dificuldade, pois a Amazônia é um mundo e muitos lugares não têm sinal de internet”, diz Mário.

A diferença na contagem saltou aos olhos, ao verificar que os indígenas que vivem em território urbano ou rural eram excluídos das estatísticas oficiais. “Em Roraima, divulgavam cinco casos, e havia 15”, conta ele.

A morte do primeiro indígena por Covid-19, um jovem Yanomami de 15 anos, em 9 de abril, acendeu o sinal amarelo. “A pandemia alertou para a fragilidade da vida no planeta, não só movida pelo vírus, mas pelas desigualdades, a indiferença dos governantes e a falta de empatia de muitos”, diz o líder.

Em uma corrida contra o tempo, Coiab e Ipam criaram o aplicativo Alerta Indígena Covid-19, lançado em 4 de setembro. O app atualiza diariamente os casos confirmados e óbitos nos 25 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) de nove estados da Amazônia Legal.

A ferramenta vasculha municípios num raio de 100 km de cada terra indígena e compara as informações da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde, com os dados da rede de lideranças e organizações da Coiab.

“A iniciativa deixa como legado a redução da subnotificação de infectados e mortos entre indígenas, a interlocução com diferentes instituições de saúde e o surgimento de novas lideranças, em um momento em que a Covid-19 ceifou a vida de líderes de diversas etnias”, diz Ane Alencar, diretora do Ipam.

O app facilitou o processo de vigilância sanitária comunitária pela Coiab, por meio de 85 celulares de lideranças indígenas que integram a rede e registram novos casos.

“Além do uso pelos próprios indígenas, o aplicativo permite a identificação rápida das áreas críticas, direcionando as ações das lideranças e organizações”, afirma Martha Fellows, pesquisadora do Ipam, que coordenou o desenvolvimento do app.

A equipe conta também Nara Baré, do povo Baré, primeira mulher a assumir a liderança da Coiab. “Diante do disparate dos números oficiais, mostramos que estamos em alerta, no luto, na luta, e vamos continuar sendo resistência pela nossa existência”, diz Nara. “Formamos um coletivo de conhecimentos indígenas e sociedade civil, reunindo pajés, médicos, especialistas de diversas áreas”, afirma Mário.

Casos de Covid-19 nos territórios indígenas apresentaram uma taxa de incidência 249% maior do que a média nacional e uma mortalidade 224% mais alta, nos casos registrados até 28 de agosto.

Baixa imunidade, alimentação deficiente e invasão de terras indígenas são alguns motivos por trás dos números alarmantes. “Se dependesse do Governo, estaríamos extintos”, diz Mario.

O Alerta Indígena segue colocando em xeque dados oficiais. Em 23 de outubro, o aplicativo reportava 28.241 casos e 695 mortes por Covid-19 entre 158 povos indígenas. Os oficiais eram: 24.999 casos e 347 óbitos.

O número de mortes registrado pelo aplicativo é o dobro do notificado pelo governo. “Os povos indígenas seguem sem um sistema robusto para atendê-los” diz Mário. “Faltam profissionais, infraestrutura e mudança na postura do Estado”.

Os rituais coletivos continuam suspensos. “Na morte, não pudemos enterrar nossos entes queridos nas aldeias pelo risco de contaminação. Perdemos a tradição de ver o corpo, tocá-lo”, lamenta o líder.

Mário reforça que o Alerta Indígena presta homenagem aos que se foram e deixa legado para os jovens. “Não é só luto, é reconhecimento de vidas”, diz. “Queremos mantê-las no pensamento, no coração. Essa ação mostra que podemos contribuir na saúde, na defesa do território e na preservação de vidas. Vidas indígenas importam.”

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Alerta Indígena Covid-19

  • 518 mil pessoas impactadas
  • R$ 377 mil em recursos mobilizados
  • 25 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs)
  • 28.241 casos confirmados e 695 mortes por Covid-19 entre 158 povos indígenas, enquanto dados oficiais apontavam 24.999 casos e 347 óbitos
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