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'Contar mortes de parentes e pessoas próximas gera muita dor', diz líder indígena sobre app

Assessora abasteceu a plataforma Alerta Indígena Covid-19, uma das premiadas na categoria Legado Pós-Pandemia entre os 30 destaques do Empreendedor Social do Ano

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São Paulo

Valéria Paye, 47, é assessora política da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) que, ao lado do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), criou a plataforma Alerta Indígena Covid-19, para mostrar a escalada da pandemia entre os povos da floresta.

A iniciativa é um dos 30 destaques do Empreendedor Social do Ano em Resposta à Covid-19, premiada na categoria Legado Pós-Pandemia. A seguir o depoimento da representante do povo Kaxuyana, do Pará, sobre a experiência de trabalhar com dados de um dos grupos mais vulneráveis nesta crise sanitária.

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“Contar mortes de parentes e pessoas próximas gera dor e angústia. Sou do povo Kaxuyana, do Pará, perto da fronteira com o Suriname. Desde março, quando o primeiro caso de Covid-19 entre os povos indígenas foi confirmado, estive à frente do contato com a rede de lideranças indígenas, na base da Coiab, em Manaus.

Meu trabalho foi organizar as informações sobre casos confirmados, suspeitos e óbitos, entre todos os povos indígenas da Amazônia brasileira. Receber notícias diárias de comunidades inteiras sendo infectadas me abalou profundamente. Tive de ser firme para estabelecer a base do sistema que deu origem ao Alerta Indígena.

Alerta Indígena- Valéria Paye. XII Assembléia da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) 2019, na Vila Betânia, município de Santo Antônio do Iça - Felipe Beltrame

De uma planilha rústica de Excel, chegamos ao aplicativo. Diariamente, eu estabeleço a coordenação dos pontos focais, como chamamos os informantes que ficam nas aldeias e em pontos estratégicos. A partir dos dados enviados por eles, seguimos atualizando os números.

No auge da pandemia, tinha dias em que eu trabalhava o dia todo só chorando, chorando. Tinha noites em que eu não dormia, ficava direto, na frente do computador.

Eu me sentia esgotada, mas sabia que não podia parar, diante do disparate dos dados oficiais em relação aos que chegavam por nossas fontes. Ver o descaso do governo com os povos indígenas foi uma parte dolorosa do processo.

O sentimento maior era de solidão, impotência, diante da tragédia que estava acontecendo.

É preciso muita força para escutar que seus parentes estão morrendo, que toda a sua história está ruindo e, ainda assim, manter-se de pé.

Meu tio, Waikö Tiriyó, por exemplo, foi a Macapá para resolver uma questão de aposentadoria, pegou o vírus e faleceu. Como ele, muitos indígenas foram até às cidades em busca de benefícios, como auxílio emergencial, e acabaram se infectando.

Foi extremamente triste perder líderes como Amâncio Ikon Munduruku, liderança da Praia do Mangue, em Itaituba, no Médio Tapajós.

Choramos a perda do professor Fausto Silva Mandulão, da etnia Macuxi, de Roraima, que tanto lutou pela causa da educação dos indígenas, entre tantos outros. Houve momentos em que achei que ia enlouquecer com as notícias que não paravam de chegar. Nessas horas, a equipe mal conseguia conversar, porque a gente não conseguia parar de chorar.

Nem tive tempo, ainda, de refletir sobre o processo que passamos e ainda estamos passando, porque a pandemia continua aí. Estamos de luto, mas não pudemos fazer os rituais. Não pudemos sequer homenagear as lideranças que se foram.

Me conforta saber que o Alerta Indígena fez a diferença e será uma semente para as próximas gerações.

Esses números são nossos, ninguém nos tira. É uma ação que vai gerar frutos, que vai auxiliar na criação de novas políticas públicas. Aprendemos a usar a tecnologia a favor da nossa causa. Seguiremos resistindo.”

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