Cura da violncia
Pioneiro, psiquiatra rompe os muros da universidade no estudo e no tratamento de transtorno de estresse ps-traumtico
" um assalto", avisou o garom da pizzaria em Macei clientela, em janeiro de 2010. Cinco homens armados com metralhadoras haviam invadido o restaurante. Dez meses depois, o mdico Marcelo Feij de Mello, 49, ainda sonha com a cena, vivida com a mulher, Andrea, 43, e o filho, Ricardo, 13.
Marcelo lembra dos gritos "celular, seno vai morrer" e do medo que o paralisou. No teve sequelas fsicas, mas a experincia deixou marcas. "Senti na pele o que eu via [no consultrio]", diz, sobre temor e pesadelos.
Foi a primeira experincia de violncia presenciada pelo psiquiatra, que desenvolve estudos sobre transtorno de estresse ps-traumtico na Unifesp (Universidade Federal de So Paulo) e, h dois anos, instituiu o Prove (Programa de Atendimento s Vtimas de Violncia e Estresse) fora dos muros da academia.
"[Dizem] que sou louco", afirma, sobre comentrios de colegas criao da instituio, que atende vtimas de situao traumtica intensa, na qual h risco de morte.
Mas no poderia deixar de receitar tratamento aps fazer o diagnstico. "Nossa sociedade est doente", avalia, acrescentando que os ndices de estresse ps-traumtico no Brasil so similares aos de pases onde h guerras.
Os estudos sobre o tema tiveram incio nos EUA, em 2001, quando recebeu bolsa de ps-doutorado. L, testes de laboratrio combinavam-se com passeios em famlia. Estudos sobre o hormnio cortisol mesclavam-se com bonecos de neve.
A opo da trade Marcelo, Andrea e Ricardo foi dedicar-se com paixo s atividades profissionais/escolares, sem descartar o tempo juntos.
Filho de pais separados na dcada de 1970, o mdico ficou com o pai, apesar de ter passado meses com a me. Para ele, foi a experincia mais traumtica de sua juventude, poca em que desquites eram pouco comuns. "[Passei por] uma situao difcil num momento em que eu estava entrando na adolescncia", diz Marcelo, que herdou do pai a liderana.
Hoje, duas vezes por semana, passa as tardes na natao com Ricardo. com ele que se arrisca no videogame. Com Andrea, professora de psiquiatria na Unifesp, onde ele professor-adjunto, a parceria se estende at o Prove, local em que ela tambm atende pacientes. "Todo mundo tem um papel bem intenso na famlia."
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Vtimas de violncia apresentam com frequncia problemas de sade mental, que na maioria das vezes so desconhecidos por elas prprias. Tambm so desconhecidos ou ignorados pelo sistema pblico de sade.
Inexiste, no Brasil, poltica pblica de atendimento a pacientes vtimas de algum tipo de violncia traumtica. Tambm no h formao ou capacitao especfica para profissionais de sade.
O nico servio disponvel para a populao na rea de psiquiatria o dos Caps (Centros de Ateno Psicossocial), que atendem pacientes em situao emergencial, com transtornos graves, mas no diretamente ligados a vtimas de violncia.
Tambm no h no pas uma cultura de que o psiquiatra um profissional da rea de sade. Quem passa por qualquer problema de sade mental menos grave no tem a quem recorrer. Se procura um posto de sade, invariavelmente atendido por um profissional de outra rea. Outro fator intrnseco a crena preconceituosa de que a sade mental existe apenas para "loucos". Nesse sentido, h uma grande lacuna nos servios mdicos da rea de psiquiatria.
Quem mais se encarrega de resolver essa carncia do Estado so as ONGs, que tentam, sua maneira, tratar esses pacientes. Mas so servios pontuais, distantes da pesquisa cientfica psiquitrica.
O Instituto Prove nasceu para derrubar todos esses estigmas. E, ao iniciar atendimento a pessoas traumatizadas por algum tipo de violncia, moral ou fsica, a organizao tornou-se a primeira ONG brasileira especializada no tema hoje referncia no Brasil e no exterior.
Outra inovao do instituto foi levar a universidade brasileira de alto padro, na rea de sade mental e violncia, para o campo onde o problema endmico. o caso da assistncia que presta no ncleo Capo Redondo (SP) e em sete favelas do Rio de Janeiro.
O Instituto Prove existe por conta de duas foras principais: uma proveniente da determinao e da formao acadmica de Marcelo Mello, seu fundador. A outra, da Unifesp (Universidade Federal de So Paulo), que financia a pesquisa, alm de prestar apoio ao instituto.
Com oramento de R$ 413 mil para este ano, at o momento, a maioria (86%) das receitas financiada por um nico parceiro (Instituto Rukha), o que fragiliza sua sustentabilidade financeira.
Ciente disso, tornou-se Oscip com o intuito de viabilizar o aumento das receitas para ampliao do espao tanto para atender mais pacientes quanto para realizar mais cursos. Para isso, o Prove desenvolve servios de capacitao de profissionais ligados rea de sade. Nesse sentido, a aposta foi assertiva e, possivelmente, ser o caminho da autossustentabilidade da organizao. Com apenas nove meses deste ano, a receita relativa prestao de servios aumentou em relao do ano passado foi de 3% em 2009 para 10% em 2010. Um excelente sintoma para as finanas da empresa. Mesmo assim, ainda insuficiente para arcar com as despesas da instituio, a receita dever atingir 68% do oramento deste ano.
O Prove tambm recebe doaes. A Unifesp, por exemplo, fornece a infraestrutura bsica de atendimento, como mveis e computadores, alm de assistncia tcnica em informtica e servio de segurana. O hospital So Paulo auxilia com material hospitalar e formulrios mdicos. J o Gimba doa suprimentos.
O instituto conta com equipe mdica altamente capacitada e comprometida. Falta-lhe, contudo, aumentar a equipe administrativo-financeira para sustentar a expanso no mdio prazo.
Principais parceiros: Capes (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior), Ceinp (Centro de Investigaes em Neuropsicanlise), CICV (Comit Internacional da Cruz Vermelha), CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico), Gimba, Instutito Rukha, Secretaria Municipal da Educao do Rio de Janeiro e Unifesp.
Desde que a iniciativa surgiu, h seis anos, j foram realizados mais de 6.000 atendimentos (cerca de 800 pessoas). Desde que se desligou oficialmente da Unifesp, em 2008, o Instituto Prove realizou 3.500 atendimentos.
A organizao comprova cientificamente seu impacto social, com ndice de 60% de sucesso nos atendimentos. Como o instituto tem origem acadmica em sade, todas as intervenes so mensuradas por meio da aplicao de escalas que avaliam sintomas, funcionamento, satisfao e qualidade de vida. As pesquisas so em geral financiadas por meio de organizaes de fomento, como Fapesp, CNPq e Capes.
A instituio teve incio na Vila Clementino, em So Paulo, como parte do atendimento da Unifesp, mas alcanou um posto avanado no Capo Redondo. Hoje atende a pacientes que vm dos rinces mais longnquos da cidade.
H tambm, no Rio de Janeiro, um brao do Prove que lida com a capacitao de profissionais de sade, programa apoiado pela Secretaria Municipal da Educao do Rio de Janeiro. Tambm atende a vtimas da violncia urbana em sete comunidades fluminenses.
No mbito da pesquisa, j foram desenvolvidos 15 projetos, que disseminam a metodologia Prove entre os profissionais da rea de sade. O empreendedor tambm tem dois livros publicados sobre a rea em que atua.
Alm das pesquisas e dos cursos que a associao promove, h um projeto, que ainda no foi iniciado, mas que pode se tornar o grande distribuidor da metodologia Prove na rede pblica, que a parceria com o Fumcad (Fundo Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente). Nessa parceria, est prevista capacitao de um grupo de tcnicos que repassaro o trabalho para toda a rede regional do Fumcad.
Outras instituies tambm tm procurado o Instituto Prove para fazer cursos de aperfeioamento, superviso e ps-graduao, alm de atendimentos. Nesses encontros, sempre so promovidos intercmbios de pesquisa e de know-how.
O TEPT (Transtorno de Estresse Ps-Traumtico) um quadro psiquitrico que acomete indivduos que passaram por uma situao traumtica muito intensa. Nesse evento, o indivduo pode ter sido a prpria vtima ou pode ter apenas presenciado o fato.
Acontecimentos traumticos que podem desencadear esses transtornos so caracterizados por experimentos ou testemunhos de ameaas de morte ou leso grave em relao a si prprio ou a pessoa conhecida, que resulte diretamente em medo intenso, desespero ou horror.
Uma pessoa, ao ser exposta a uma situao traumtica violenta, desenvolve uma reao aguda de estresse, que dura no mximo 30 dias e desaparece. Porm, de 15% a 20% dessas pessoas desenvolvero o TEPT. Nesse caso, os sintomas da reao aguda persistem e tomam as caractersticas da doena. Em algumas situaes, o paciente no a desenvolve imediatamente. Podem ocorrer ataques distantes do episdio.
A vtima geralmente fica assustada e hipervigilante. Est sempre alerta e tem muita ansiedade, alm de insnia. O TEPT , alm de grave, um quadro crnico, que, se no tratado, pode durar anos. Tambm implica vrios quadros associados, como depresso.
A revivncia do trauma (imagens, sonhos, "flashbacks") passa a atormentar a vtima, que vivencia o episdio a todo momento. As crises so acompanhadas de intenso sofrimento. E, para no reviv-las, o paciente comea a evitar situaes que possam desencadear lembranas, como assistir a filmes ou noticirios que remetam ao assunto. Com isso, vai se isolando, o que agrava o quadro. Quando no tratado, pode lev-lo ao abandono do emprego e da vida em sociedade.
O TEPT tem tratamento, que deve ser feito por especialistas. Inclui medicaes antidepressivas, ansiolticas e estabilizadoras do humor. A incluso da psicoterapia fundamental, comos a terapias cognitiva-comportamental e interpessoal. As terapias so breves e focais.
Para conter o alto ndice (25%) de estresse causado pela violncia na cidade, maior responsvel pela incidncia de TEPT, o Instituto Prove desenvolve uma metodologia rica e densamente comprovada para atender seu pblico-alvo. Com isso, ele cumpre seu papel de cunho cientfico e social, suprindo lacunas da sade pblica brasileira.
O Prove desenvolveu e testou ferramentas de diagnstico e interveno desses problemas dentro da realidade brasileira. Tambm treinou profissionais de sade mental e est capacitando profissionais do programa de sade da famlia que trabalham em regies de guerra urbana no Rio de Janeiro. Far treinamento de professores e outros profissionais em escolas nessa mesma situao para diminuir o "bullying" (violncia fsica ou psicolgica, intencional e repetida, praticada por indivduo ou grupo).
Com programas de atendimento clnico individual, psicoterapia em grupo, tendo como base o atendimento conforme as tcnicas de psicoterapias mais indicadas para este transtorno, e psicanlise, a organizao trabalha para tratar ou inibir os sintomas desse mal, hoje, cada dia mais frequente na vida das pessoas.
Alm disso, todos os profissionais vinculados ao Prove esto inseridos em programas de ps-graduao, que so voltados pesquisa e ao tratamento eficaz da doena.
- Programa de Atendimento s Vtimas de Violncia: destina-se ao atendimento da populao vtima de trauma decorrente da violncia. Tambm se destina pesquisa. Para isso, a organizao conta com equipe multidisciplinar, composta por profissionais especializados em psiquiatria, psicologia, enfermagem e educao fsica. Em dois anos de atuao, o Instituto Prove atendeu 2.800 pessoas em sua sede, na Vila Clementino, e 800 no ncleo Capo Redondo (Instituto Rukha).
- Clnica de Terapia Interpessoal: exerce atividades de ensino. Seu principal objetivo desenvolver conhecimento cientfico e promover capacitao de profissionais de psicoterapia. Os cursos promovidos seguem as diretrizes propostas pela Sociedade Internacional de Psicoterapia Interpessoal. Alm do curso introdutrio de formao, tambm so ministrados cursos para outros contextos clnicos, como transtorno de estresse ps-traumtico, transtorno bipolar do humor, terapia interpessoal de grupo e transtornos alimentares.
- Consultorias: o Instituto Prove tambm tem contrato de consultoria de servios com o CICV (Comit Internacional da Cruz Vermelha), no Rio de Janeiro, com objetivo de prestar assistncia em sade mental s pessoas afetadas pela violncia urbana em sete comunidades do Rio de Janeiro.
DEPOIMENTOS
"Fui agredida por um aluno h um ano. Esse aluno tinha 11 anos e muitos problemas. Todo dia ele chorava. A me falava que ele no tinha nada. Um dia, o estudante chegou atrasado com a av. Eu [o] chamei: "Vamos [entrar]. No posso ficar tanto tempo fora da sala".Ele pegou meu brao e... (pausa) bateu no corrimo. No largou e tive que chamar dois alunos [para me ajudar]. Eu no podia fazer nada. Ele acabou descontando a revolta na pessoa mais prxima. A mo inchou. Alguns nervos foram macerados.
Na hora, no achei que eu fosse desenvolver isso [TEPT]. J havia passado por outras situaes de estresse, mas o amor pelas crianas era maior. Dou aula h 15 anos para turmas de 42 alunos em escola municipal.
Trabalhava dentro da favela e tinha paixo pelo que eu fazia, era opo de vida minha. J rolei da escada, j presenciei policiais dentro da escola. [A violncia] nunca me chocou tanto.
Fui ao mdico, engessei a mo e comecei a ter angstia, sonhos horrorosos. No dormia noite. Era um sofrimento muito grande. Fui me isolando. Hoje tenho pavor de crianas.
Eu passei por, no mnimo, dez mdicos [antes de obter o diagnstico]. Nunca fui covarde. Mas, na hora do desespero, doeu tanto, tanto. Eu me assustava com esses pensamentos. Eram pensamentos feios em algum que sempre gostou da vida.
Eu no era uma pessoa m. Eu estava doente. Precisava me tratar, mas um tratamento correto, certo. Eu falei [para o mdico]: 'Me ajude, eu vou fazer uma loucura'.
Fui encaminhada a um servio da prefeitura. L, me encaminharam para o Prove. Fui atendida com muito carinho. Diagnosticaram transtorno de estresse ps-trauma. Eles me do remdios que eu preciso.
Uma caixa com 14 comprimidos de um dos remdios custa R$ 700. Preciso de duas caixas por ms e tomo outros trs remdios diferentes. Venho trs vezes por semana --consulta individual e duas terapias de grupo.
Estou aprendendo a lidar com essa situao e a como me posicionar, porque perdi o equilbrio. A gente est aprendendo a conviver novamente conosco, a aprender a aceitar essa nova pessoa. libertador.
Hoje estou conversando com voc e no estou chorando. Falar que eu estou curada, eu no estou. Mas, se eu parar a terapia aqui, eu caio.
[Em um ano,] eu me vejo curada, trabalhando, produzindo, muito ativa como sempre fui. Queria trabalhar com crianas em hospitais e fazer uma ps no [hospital] A.C. Camargo."
Josi Duarte, 49, professora municipal licenciada