Fotógrafo promove caravanas para transformar o Brasil a partir da escola
Faltavam 2 km até São Félix do Jalapão (TO). Juntos estavam Luis Salvatore, a irmã dele (Ana Elisa), um jornalista e o cachorro Trilha quando o carro off-road capotou.
O acidente, ocorrido em 2001, quando estavam a caminho de Carolina (MA), provocou susto, ferimentos, esforço para desvirar o carro e perda do para-brisa. E também um veredicto: "Agora a gente vai em frente. Há pessoas esperando por nós".
Assim o advogado e fotógrafo Luis Eduardo Cardoso de Almeida Salvatore, 38, se guia, num Brasil pouco conhecido e, não raro, à margem do poder público.
Salvatore começou a desbravar o sertão e a descobrir-se sertanejo em 1999, quando percebeu que seu emprego numa multinacional não lhe permitia ter experiências como as dos avôs Eduardo (colecionador de objetos de viagem) e Plínio (que contava como o contato com gente poderia enriquecer a vida).
O primeiro esboço do que seria uma expedição pelo Brasil -e que mais tarde moldou a criação do IBS (Instituto Brasil Solidário) - foi no Parque Indígena do Xingu. "Foram 20 horas de ônibus até o Mato Grosso e mais 10 horas de barco até a aldeia Mehinako. Não falavam português", relata. "Foi incrível. Vi a reação dos índios com a primeira TV ligada lá."
Os dez dias no Xingu afloraram a verve empreendedora. "Percebi graves problemas de saúde bucal. Combinei que, voltaria com um dentista e eles me dariam autorização para uso das fotografias que tirei", diz Salvatore. E ele voltou, com um tio dentista.
Colocaria o pé na estrada novamente em 2000, no que batizou de "Trilha Brasil - O Brasil em Busca dos Brasileiros". A expedição de um ano teve início em Porto Seguro (BA), motivada pelos 500 anos do descobrimento, e passou por 14 Estados, atrás das histórias de Lampião, Antônio Conselheiro e outros.
Salvatore fechou a viagem com 24 mil fotografias, 12 mil kms rodados e a parceria com o labrador Trilha. E, assim como no Xingu, se impôs a missão de voltar e buscar melhorias para os locais visitados.
RALLY DOS SERTÕES
Em 2001, um convite do Rally Internacional dos Sertões acelerou a volta de Salvatore ao Brasil profundo. "Falei que não trabalharia com navegação e pilotagem. Mas, se me permitissem, faria ações sociais nas cidades por onde o rali passasse."
Nessa época, uma experiência em Pernambuco e um insight nortearam o campo de atuação de Salvatore.
"Em 2000, visitamos uma escola em São José do Egito [PE]. As aulas eram em forma de poesias cantadas, os alunos falavam com rimas. Vi ali que a escola pode ser a base da transformação social. E, depois, sonhei que nadava numa piscina de livros, igual ao Tio Patinhas em dinheiro."
Passou, então, a levar livros às escolas e a trabalhar para melhorá-las.
A parceria com o rali durou até 2011 e colocou Salvatore em circuitos importantes, como o dos empresários Samuel Klein e Paulo Nobre.
"Em 2003, um caminhão das Casas Bahia tombou, com cesta básica, livros, material escolar. Eles não sabiam o que fazer. Então indicaram a eles que ligassem para o Salvatore, pois eu saberia quem ajudar com aquilo."
Ao mesmo tempo em que a relação com as Casas Bahia se intensificou, Salvatore se casou com a advogada Danielle Haydée e com ajuda dela passou a fortalecer sua tecnologia social.
CARAVANA ESCOLAR
A caravana nas escolas, então, passou com mais afinco a criar bibliotecas, a fomentar a leitura, a dar ferramentas a educadores, a indicar caminhos a gestores públicos e a ampliar sua atuação. Consolidou o plano de atuar 30 meses em cada município -in loco a cada nove meses.
Desde 2000, Luis Salvatore trabalhou em 175 municípios. E emponderou gestores, diretores, professores e cidadãos, o que resultou na implantação de escovódromos, construção de hortas e bibliotecas em escolas e ações transformadas em política pública, como o Dia da Leitura e o São João Literário.
Um forte impacto de seu trabalho é o esforço para melhorar o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) com sua tecnologia social, batizada desde 2009 de Programa de Desenvolvimento da Educação (PDE).
Com o PDE, que atua em seis áreas (educomunicação, incentivo à leitura, educação ambiental, arte e cultura, saúde e empreendedorismo), Salvatore e o IBS ajudaram escolas a brilharem no Ideb.
É o caso da Escola Municipal Professora Noilde Pessoa Ramalho, em Natal, que saltou de 3,4 (2011) para 4,5 (2013), e da Escola Municipal Santa Rosa Esc Cid, em Crateús (CE), que de 4,3 (2009) chegou a 6,0 (2013).
Hoje com ações em 24 cidades e pelo menos 200 pessoas em campo, Salvatore chamou a atenção do governo federal com programas como o LEVE, que fez Crateús, atingir 100% de reaproveitamento do lixo na área urbana em pleno sertão cearense.
MOBILIZAÇÃO
Ouvido atento para os anseios das cidades por onde passa e usando sempre a frase "A palavra convence, e o exemplo arrasta", o fotógrafo paulista se viu diante de três dos piores momentos de sua vida em 2014.
Primeiro, o patrocínio das Casas Bahia não foi renovado como nos anos anteriores e passou a atender programas já em andamento. Em seguida, o cão Trilha, que o acompanhava desde 2000, e o pai, Luis Alberto, vítima de câncer, morreram.
Mas Salvatore se diz hoje mais forte. Outro cachorro, Xote, passou a acompanhá-lo em campo e se lançou na busca de patrocínios e novas formas de financiamento. Quanto ao pai, diz homenageá-lo a cada dia de trabalho.
Com a renda baseada nos direitos de imagens que registra pelo Brasil -é autor de dois livros e um documentário-, Salvatore passa cerca de cinco meses fora de casa.
Com dois filhos, Luis Eduardo, 9, e Maria Luísa, 4, ele se desdobra para se fazer presente à distância. "Todo dia, tenho que achar um telefone para dar bom dia ou boa noite."
Mas encontrar sinal de internet ou de telefone não é tarefa simples nos rincões mais isolados do país. "Eles nem sonham, mas às vezes preciso andar até 70 km por um sinal de telefone. Mas nem conto. Só ligo." E faz ginástica para melhorar a comunicação. "É comum subir em caixa d'água, telhado, montanhas."
Isso porque, para ser Salvatore, diz ele, "tem que acreditar no próximo" e, ainda que capote, seguir em frente, Brasil adentro.
ALÉM DOS MUROS
Formado em música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Lourivan Tavares, 37, é o "professor Pardal" das caravanas do Instituto Brasil Solidário (IBS).
Em suas oficinas país afora ele vem construindo orquestras de lata e ensinando crianças e monitores a tocarem instrumentos feitos de material reciclado, como chinelos, tubos e garrafas.
Na passagem por Gentio do Ouro e Boquira, no sertão da Bahia, o professor fechou os três dias de imersão com uma apresentação de Beethoven por meninos do sertão tocando xilofone montado com pedaços de vidro e barbante, percussão com emendas de cano e "sinos" com garrafas d'água suspensas.
Louro, como é chamado, faz um balanço do trabalho de três anos no IBS: "Vejo como temos mudado a vida das pessoas e a nossa. Estamos deixando um legado."
E a música continua ecoando quando a trupe do instituto vai embora. A ideia é que professores, diretores, gestores e outros participantes das oficinas continuem o trabalho. No caso de Gentio do Ouro, o papel coube à auxiliar de serviços gerais Lethícia Lima, que, além de limpar a escola, passou a liderar 35 crianças de 4 a 15 anos na banda de lata Batucarte.
"Criamos a banda, mas não temos espaço para ensaiar. A gente ensaia, então, na frente da minha casa, na rua, sob sol ou chuva", conta Letícia. E se apresentam em eventos no município carente de atividades culturais. "O trabalho do IBS afeta a cidade inteira. Eles nos deram conhecimento para transformar a nossa realidade."
A "regente" da orquestra de lata incorporou o lema do IBS "Juntos Construímos". O objetivo maior da ação do instituto é empoderar os mais diferentes agentes sociais em prol da educação e, em especial, por realizar esse trabalho em municípios de baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
Fundado em 2005, o instituto já capacitou 12.686 educadores por meio do PDE (Programa de Desenvolvimento da Educação).
Professores são os principais protagonistas na produção de conteúdo, como a criação do fantoche Sarapatel, estrela do recreio na escola municipal Luiz Viana Filho, em Irecê (BA). Usado para tratar de forma lúdica questões de saúde e sexualidade, por exemplo, o boneco já chamou atenção de educadores norte-americanos.
Situadas em áreas rurais ou em periferias, as "ilhas de desenvolvimento" desenhadas pelo IBS no interior do Brasil chegou às Malvinas, comunidade na periferia de Irecê, assim chamada em alusão à Guerra das Malvinas, devido à violência.
A transformação do bairro, antes estigmatizado, passou pela escola municipal, que hoje é exemplo na rede.
"Com ajuda do IBS, criamos biblioteca e integramos a escola aos principais agentes do bairro. Trouxemos a comunidade para a escola", diz o diretor Cristiano Rocha. Ele viu o desempenho da Luiz Viana Filho melhorar de 2,6 para 3,6 no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica).
O IBS abre ainda novas frentes, como o Learning Journey, programa desenvolvido com colégios particulares de São Paulo para levar alunos a conhecerem o Brasil profundo. "As ações do IBS são bem diferentes de tudo o que eu tinha feito. É ouvir, entender a necessidade e fazer diferença na vida das pessoas", diz Mariana Mendes, 18, que esteve em Palmeiras, Vale do Capão e Tejuco, no sertão baiano.
Na cidade ou no campo, com soluções testadas para municípios com menos de 100 mil habitantes, o IBS continua redescobrindo o Brasil.
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Tendo como base o IDH, indicador de progresso no longo prazo em três dimensões básicas do desenvolvimento humano (vida longa e saudável, acesso a conhecimento e qualidade de vida), é indiscutível a evolução do resultado brasileiro, que passou de 0,545 em 1980 para 0,744 no ano passado (em uma escala de 0 a 1).
Esses números, contudo, ocultam uma realidade marcada pela desigualdade interna: quando se analisa o IDH-M (PNUD Brasil, 2010) por unidade federativa, encontra-se, de um lado, índices similares aos de países ricos no Distrito Federal (0,824) e em São Paulo (0,783); na outra ponta, estão Estados como o Pará (0,646), o Maranhão (0,639) e Alagoas (0,631). Esmiuçando-se os índices na educação, o resultado mostra-se mais desalentador: 13 Estados estão na faixa de IDH baixo (0,500 - 0,599), todos nas regiões Norte e Nordeste (Alagoas tem o pior índice: 0,520). Sabe-se que o cenário se agrava no nível municipal nessas localidades, histórica e culturalmente marcadas por corrupção, coronelismo, clientelismo e assistencialismo.
Ainda que o cenário tenha evoluído, os desafios ainda são muitos, considerando-se que:
- o Brasil tem a terceira maior taxa de abandono escolar (24,3%) entre os 100 países com maior IDH (Relatório PNUD 2012);
- 17,9 milhões de brasileiros de 5 anos ou mais de idade não são alfabetizados -sendo 5,8 milhões na área rural (IBGE, 2011);
- numa amostra de 50 escolas rurais de dez Estados, 70% não tinham biblioteca, 66% não contavam com computador e 92% não tinham acesso à internet (Ibope, 2010).
Luís Salvatore, 38, é mentor e principal líder do IBS, que surgiu organicamente a partir de expedições ao Brasil profundo, como ao Xingu, em 1999. Fotógrafo formado em Direito, coordenou os projetos sociais do Rally Internacional dos Sertões de 2003 a 2011, experiência que lhe conferiu profundo conhecimento de algumas das regiões mais carentes do Brasil e competências essenciais ao seu trabalho atual (planejamento e logística, por exemplo), além de ter aberto contatos de empresários patrocinadores, como a família Klein e Paulo Nobre. Autor de dois livros e um documentário, apresenta traços de liderança típicas de empreendedores sociais: é idealista, centralizador, visionário, personalista, resiliente. Dedica-se "90% do tempo" ao instituto (é sócio de duas empresas de comunicação, de onde obtém sua remuneração, de R$ 10 mil a R$ 15 mil mensais).
Ainda que se reconheça na causa da educação, avalia-se que a principal inovação do candidato por meio do IBS está no método de mobilização social e política desenvolvido empiricamente ao longo de sua história.
Chamado de PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação), o método coloca a escola como polo irradiador de desenvolvimento local em municípios de baixo IDH com até 100 mil habitantes. Por meio de ações transversais, provoca a mobilização de alunos, pais, professores, funcionários públicos e políticos locais para o empreendimento de transformações significativas no município, como a recuperação de equipamentos públicos e a participação social crescente no âmbito da cidadania e da política.
Inquieto, o candidato mostra-se aberto à inovação contínua por meio de reflexões críticas construídas "no chão da escola" e adaptações feitas por tentativa e erro. Contudo, aparenta resistência à aplicação de modelos teóricos fundamentados pela pedagogia "tradicional". Um de seus diferenciais está em conseguir ações de resultado imediato com alto nível de engajamento e participação da comunidade, já que seus principais congêneres locais atuam, em geral, de forma mais restrita, seja na formação de professores, seja com foco na leitura.
O IBS foi fundado oficialmente em 2005, porém suas atividades tiveram início há 17 anos, o que denota sua capacidade de existência no longo prazo -mesmo após a perda mais de 70% de seu orçamento em 2014, com um rompimento unilateral de contrato das Casas Bahia, que passou a ser administrada pelo grupo francês Casino.
Em razão dessa perda, o empreendedor social partiu para uma estratégia de diversificação de recursos e criação de fontes de receita, que segue atualmente uma vez que boa parte dos recursos ainda concentrada em patrocinadores de longo prazo. Além de conquistar novos apoiadores, lançou o programa Learning Journey, de intercâmbio social para empresas e escolas particulares, aproveitando seu know-how nos rincões do país, entre outras iniciativas.
Em 2014, o IBS obteve receita de R$ 1,92 milhão e superávit de R$ 143 mil. Seus principais patrocinadores são Via Varejo, Instituto Samuel Klein, Paulo de Almeida Nobre e Fundação João Alfredo Monte Verde. O último relatório de auditoria financeira disponível é de 2013.
A equipe base é formada por 14 profissionais (PJ) e dois celetistas, além da diretoria. A gestão é profissional, com práticas qualificadas e processos bem definidos em comunicação, finanças e projetos, a despeito da escassez de recursos, típica do setor. Além da sede em São Paulo, conta com uma base em Lençóis e outra em Canudos Velho, ambos na Bahia.
A visita de avaliação a dois municípios em que o IBS atua (Gentil do Ouro e Irecê, no interior baiano) constatou o impacto de suas ações em termos qualitativos imediatos e de longo prazo, sobretudo no que concerne: i) ao alto grau de envolvimento da população local em suas atividades centradas nas escolas; ii) à participação social e cidadã na vida política, principalmente no âmbito das secretarias de educação e na esfera legislativa municipal; iii) ao empoderamento individual e coletivo, em uma região marcada pelo assistencialismo; iv) à construção ou reforma de equipamentos públicos (escolas, bibliotecas e hortas); v) à atuação em seminários, oficinas e atendimento odontológico do instituto.
Em termos quantitativos, o IBS afirma ter beneficiado diretamente 266.864 pessoas, sendo 3.854 em 2015. Entre os outputs mencionados estão:
- 11.853 educadores capacitados;
- 11.196 atendimentos odontológicos;
- 20.395 atendimentos médicos;
- 4.151 óculos distribuídos;
- 127.222 kits escolares entregues;
- 750.000 livros doados;
- 231 bibliotecas formadas/ampliadas.
Atualmente, o instituto se prepara para sua primeira avaliação de impacto externa.
As ações do IBS influenciam o poder público em três frentes.
1) fortalecimento do controle social - principal eixo nesse critério, se dá com a aproximação das comunidades escolares de questões e soluções públicas, de modo a fortalecer as instâncias de diálogo, decisão e aproximação dos públicos às decisões;
2) mudanças na atuação governamental - apoio ao gestor público, indicando caminhos de financiamento público e motivando-o a buscar novos conhecimentos que possam fundamentar melhorias em sua localidade, fazendo bom uso do erário;
3) criação de leis - o IBS se reúne com o Poder Legislativo local para orientar acerca dos programas educacionais federais e seus possíveis desdobramentos em leis. Também influenciou a criação de diversas leis como as de implementação do Dia da Leitura e de Escovódromos nos municípios em que atua.
O IBS não faz uso de financiamentos públicos, exceto contrapartidas municipais de gasolina, hospedagem e alimentação para os seminários realizados in loco.
Atualmente, o candidato atua em seis municípios - Boquira (BA), Carolina (MA), Gentio do Ouro (BA), Ibitiara (BA), Novo Acordo (TO) e Tracuateua (PA). Vale ressaltar que o método é desenvolvido ao longo de dois anos e de forma ativa com situações presenciais. Após essa fase, inicia-se um trabalho de manutenção e fortalecimento, que é perene. Assim, em sua história, o empreendedor social afirma ter atuado nas cinco regiões do Brasil, em 18 Estados e em 173 municípios, a maioria de até 100 mil habitantes.
O crescimento se deu em escala e centralizado no Instituto, com exceção de uma replicação no Paraguai, na cidade de Hernandárias.
O efeito multiplicador do IBS acontece sobretudo de duas formas: i) de dentro para fora, ou seja, o próprio instituto escolhe novos municípios que receberão o PDE; ii) orgânico, por meio de multiplicadores locais, que compartilham os conhecimentos adquiridos em formações do IBS com outras escolas e municípios. A visita de avaliação constatou que ambos os caminhos se dão efetivamente.
Por se tratar de um método próprio, desenvolvido empiricamente, é baixa a probabilidade de replicação sem interferência do instituto. Contudo, o candidato mostra-se preocupado em alcançar a esfera federal para que o PDE se torne uma tecnologia educacional reconhecida e reaplicada em outros contextos. A organização conta com grande parte do conteúdo sistematizado em apostilas e agora investe para aprimorar esse material.