'Nem traficante nem prostituta': jovem de favela vira líder de grupo musical
Amanda Oliveira, 26, teve seu rosto queimado por água fervendo quando era bebê. As cicatrizes que carrega pela vida foram razão para bullying nas escolas, onde era alvo da curiosidade dos colegas e recebeu diversos apelidos.
Filha de um jardineiro com uma faxineira, a paulistana não tinha perspectivas de um futuro diferente daquele que encontrava nas vielas das favelas onde nasceu e cresceu: "Minhas referências de mundo eram o traficante e o profissional do sexo".
Viu sua vida mudar por meio da música que vinha das salas de aula de um projeto social, do qual acabou se tornando líder. Hoje, estudante de psicologia, está à frente de um grupo musical, chamado As Valquírias, composto por meninas da periferia de São José do Rio Preto, onde mora atualmente.
Ela e a trupe rodam o Brasil fazendo apresentações. A experiência, contada também em palestras, vai virar um livro, que Amanda está escrevendo e narra a seguir em primeira pessoa.
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Eu nasci em uma favela da zona sul de São Paulo, onde vivi até os 8 anos. E ainda moro em uma até hoje, só que agora em São José do Rio Preto [438 km de São Paulo]. Na infância, era comum acordarmos no meio da noite com um tiroteio.
Minha mãe trabalhava como faxineira e meu pai era jardineiro. Ela conta que um dia chegou do trabalho, arrumou o nosso barraco, preparou uma inalação para mim que, na época, tinha três meses.
Ela ferveu a água em uma panela e colocou remédio para eu respirar o vapor, pois a gente não tinha o aparelho em casa. Só que meu pai cochilou comigo no colo e fui parar com o rosto dentro da água quente. Tive queimaduras de segundo grau na face inteira e na lateral inferior direita, de terceiro.
Todas as peles do meu rosto soltaram. Fiquei internada três meses. Eu não lembro, mas minha mãe chora muito quando fala de todo o processo de internação.
Apesar das queimaduras, eu não fiz plástica. À medida que fui crescendo, a pele foi esticando e fiz alguns tratamentos. Ainda tenho cicatriz no rosto, mas nada exagerado. Aprendi a disfarçar me maquiando.
A pior fase foi na escola, quando os meninos tiravam sarro da minha imagem. Eu tinha muitos apelidos, era a diferente de todos. Chorava muito. Fiz terapia até os 20 anos. Foi algo que pesou muito na minha vida. Sempre achei que não ia namorar ou arrumar emprego.
Quando tinha 8 anos, mudamos para o interior, onde meu pai conseguiu comprar uma casinha, também na periferia. Aqui, o tráfico está todo dia na capa do jornal.
Tudo conspirava para eu me acomodar: 'Você não escolheu onde nasceu e não vai escolher para onde vai'. Estar dentro de uma comunidade periférica e acreditar que vai conseguir ter um futuro diferente é muito difícil. Não havia perspectiva.
Até que quando eu tinha 11 anos, minha mãe matriculou a mim e a minha irmã no Instituto Espírita Nosso Lar, projeto que trabalha com crianças em situação de vulnerabilidade social. Economizávamos, lá tínhamos café da manhã e almoço. Feijão e arroz nunca faltaram, mas em casa nem sempre havia mistura [carne ou outras proteínas] na mesa.
O projeto me mostrou outra realidade e acabei me encantando. Eu era aceita, não tinha preconceito como na escola. As pessoas estavam preocupadas com o meu talento. Fazia aulas de música, dança e reforço escolar.
Conforme participava das aulas de música, eu me encontrei e me vi parte de um grupo. Mudou minha referência de mundo, que era o traficante e o profissional do sexo. Para quem vive em comunidade, é muito difícil alterar essa visão se não tiver apoio.
MULTIPLICANDO O IMPACTO
Fui aluna até os 15 anos, quando me ofereceram uma ajuda de custo de R$ 100 para trabalhar como monitora. Depois, assumi as classes de música até quase os 19 anos. Foi quando a diretora me chamou para a coordenação geral de todo o instituto, que na época atendia 270 crianças.
A princípio, não quis aceitar porque ainda não estava formada, mas pensei: 'Vou ser diferente, vou ajudar minha comunidade'.
Em cinco meses, peguei o jeito. E fui além, há seis anos, fundei o projeto As Valquírias. É um grupo de percussão, que também canta e dança, formado por 120 meninas, de 5 a 19 anos, todas da periferia e saídas da mesma realidade que eu.
Foi penoso conseguir os instrumentos, mas o projeto se expandiu. Fui selecionada em um edital municipal de R$ 15 mil e comprei os instrumentos. Também ganhei outro edital do Ministério da Cultura, no valor de R$ 180 mil, para compra de mais instrumentos, figurinos e acessórios.
O grupo começou a ser referência na região. Consegui ampliar ainda mais o projeto depois que, por dois anos consecutivos, fui selecionada em edital da Unesco, no valor de R$ 147 mil e R$ 167 mil.
Agora, As Valquírias viajam pelo Brasil fazendo apresentações. O grupo toca Marisa Monte, Elis Regina, Vinícius de Moraes. É um processo de reeducação também, porque as meninas voltam com outra bagagem cultural.
As pessoas sempre vão falar que não é possível. Mas eu digo para as meninas que nós nascemos aqui [na periferia] e temos o poder de escolher para onde vamos.
No grupo, algumas têm mães presas e outras, padrastos que foram baleados. Tem menina sem família e que mora com vizinhos. Elas duvidavam de que é possível chegar lá, ter uma profissão. Mas não é! Eu falo: 'Vamos juntos!' Histórias mudam histórias.
Essa oportunidade na música representa mudança na vida para essas meninas, como foi para mim. Fui salva em todos os sentidos. A periferia te leva para muitos caminhos que parecem mais fáceis. Por meio da música, conseguimos recalcular a rota da história de vida de tantas Valquírias. Elas estão quebrando [a lógica de] um círculo familiar. As próximas gerações serão diferentes.
Hoje, estou fazendo faculdade de psicologia. Consegui uma bolsa de 100% e me divido entre os projetos, a faculdade e palestras, que chamo de 'Alterando Referências'. Também estou escrevendo um livro. Vou contar um pouquinho da minha história e também sobre os ouros escondidos nas periferias.