Conviver, cuidar de e amar um familiar próximo com Alzheimer é uma jornada intensa e cheia de nuances. No começo, você não tem muita informação e fica perdido sobre como agir. Percebe as alterações de humor, a repetição, os atos incomuns que passam a marcar presença na pessoa.
Depois vem o diagnóstico e, com o avançar do tempo, mais sinais da doença –que progride de diferentes formas, a depender de cada caso. Chegam também sentimentos difusos: ternura, frustração, carinho, negação. Medo. Depressão.
Mas há um lado poético, ainda que triste, deste processo.
Minha avó já passava dos 90 quando começou a apresentar os sintomas mais agudos. Depois de quatro anos morando em nossa casa, não só a mente como o corpo começou a definhar.
Num certo momento, ela precisou ser internada. Quase partiu, mas voltou para casa e se tornou totalmente dependente de cuidados.
Quando eu ficava com ela, minha avó não entendia bem quem estava ali. Sabia que era um rosto amigo, mas não lembrava o nome –menos ainda que era sua neta. A lucidez tinha ido embora de vez.
Só que uma característica de sua personalidade permanecia viva: ela ficava indignada com a moda da calça jeans rasgada!
Eu tinha um modelo e, ao me aproximar, usando, ela perguntava, inconformada: "Rasgou?". Eu respondia: "Não, vó, já comprei assim". Ela retrucava: "Comprou rasgada? Como é que pode?!". Olhava indignada e voltava para seu mundo. Dois minutos depois, esquecia tudo e perguntava de novo.
Assim seguíamos por cinco, seis ou sete vezes na mesma conversa, por muitas vezes, sempre que eu me vestia daquela forma. Era eu colocar a famigerada calça que ela fazia cara inconformada. Rasgou?
Minha avó faleceu meses depois. Descansou ela e descansamos nós com o encerramento de sua jornada.
O engraçado é que o Alzheimer foi levando sua noção de tempo, de espaço, as lembranças mais queridas, como é que se come, a capacidade de andar, os nomes de seus familiares. Mas a calça rasgada, ah, essa não!
Não importava em que ano a cabecinha dela achava estar. Jamais seria normal alguém pagar para ter uma peça de roupa que chega ao armário nova, porém rasgada. Como é que pode?
Pois é, vó. Você tinha razão. Não faz o menor sentido.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.