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Vivemos uma amnésia coletiva dos lockdowns da pandemia

Monotonia daquela época faz com que as lembranças sejam nebulosas

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Jemima Kelly
Financial Times

Apesar de todo o tédio, a ansiedade e o sofrimento dos lockdowns da pandemia, algumas pessoas também experimentaram um tipo estranho de animação. Ser proibido de sair de casa ou de ver entes queridos pode ter sido terrível, mas pelo menos podíamos nos consolar com a ideia de que estávamos vivendo um grande acontecimento na história. Contaríamos aos nossos netos sobre esse tempo. Filmes seriam feitos sobre isso.

No entanto, enquanto a investigação oficial da Covid continua no Reino Unido, e menos de 16 meses após as últimas restrições legais terem sido suspensas no país, os lockdowns não apenas parecem pertencer a um passado distante, como parecem estar desaparecendo, rapidamente, de nossa consciência. Muitos de nós temos apenas lembranças nebulosas desse período e muito pouco senso de quando fatos importantes aconteceram nessa época.

Duvide dos pensamentos negativos
Monotonia dos lockdowns faz com que seja mais difícil lembrar do que passamos - Pexels

Lembro-me de uma amiga minha comentando esse fenômeno no verão de 2021, quando a visitei pela primeira vez em mais de um ano. "Isso parece muito normal", diz ela. "Passamos por tanto sofrimento e agora parece que nunca aconteceu." Hoje tudo parece ainda mais distante.

Em uma pesquisa realizada esta semana pela empresa Prolific, compartilhada com o jornal Financial Times, um quarto de uma amostra representativa de quase mil entrevistados disseram ter apenas "uma vaga lembrança" de como passaram o tempo durante o lockdown.

Um estudo publicado no mês passado, entretanto, na revista científica PLOS One, descobriu que os participantes, que foram entrevistados em maio de 2022, eram tão ruins em recordar a sequência temporal dos principais eventos que foram notícia em 2021 quanto fatos que aconteceram três ou quatro anos antes. Os lockdowns, concluíram os pesquisadores, tiveram um efeito semelhante em nossa memória ao observado em pessoas que cumpriram pena na prisão –nossa capacidade de recordar pontos diversos durante esse período foi prejudicada.

Arash Sahraie, principal autor do estudo e professor de psicologia na Universidade de Aberdeen (Escócia), me diz que a monotonia é em parte a culpada: durante os lockdowns, os dias e as semanas se repetiam. "Você precisa de pontos de referência para poder se lembrar das coisas", diz Sahraie. "Ao removê-los, você não tem nenhum ponto de ancoragem em seu tempo-espaço e tudo se mistura. O tempo desaparece."

Estresse e infelicidade provavelmente também contribuíram. Aqueles que relataram sentimentos de depressão ou alta ansiedade nos períodos de isolamento social eram mais propensos a ter dificuldade para lembrar dos acontecimentos no estudo. "O estresse psicológico muda a maneira como percebemos as coisas e nossa percepção do tempo", diz Sahraie.

No entanto, aqueles que perderam pessoas queridas, ou que ficaram gravemente doentes, provavelmente têm lembranças muito detalhadas desses fatos. E a maioria de nós provavelmente tem memórias específicas do início do primeiro lockdown, em março de 2020 –o momento em que a ordem para "ficar em casa" foi anunciada pela primeira vez, por exemplo, ou nosso último dia no escritório.

Como coloca Daniel Schacter, professor de psicologia da Universidade de Harvard e autor de "The Seven Sins of Memory: How the Mind Forgets and Remembers" (Os sete pecados da memória: como a mente esquece e lembra, em português): "A maioria das pessoas tem uma história do primeiro dia de confinamento".

Esse componente de narrativa me parece ser a chave do que está acontecendo agora. Não apenas os dias se fundiram, não apenas nossas salas de estar falharam em fornecer as pistas ambientais com as quais normalmente contamos para desencadear nossas memórias, como muitos de nós estávamos fazendo mais ou menos a mesma coisa.

Construímos memórias pelo que os psicólogos chamam de "ensaiar" a história do que aconteceu repetidas vezes, para nós mesmos e também para os outros. E não é muito bom contar a sua amiga como você começou a assar pães de verdade e a assistir "Tiger King" porque ela, ao que parece, também fez isso. A semelhança da experiência do lockdown, em outras palavras, está exacerbando nossa amnésia coletiva.

"Dada a mediocridade geral de toda a experiência, as pessoas podem não se sentir motivadas a falar sobre o que lembram", diz Norman Brown, professor de psicologia da Universidade de Alberta. "E, como o ensaio é um fator importante na retenção de memórias pessoais em longo prazo, essa ausência de motivação mnemônica prevê que o período da Covid talvez não seja tão bem lembrado quanto se poderia esperar."

Não há dúvida de que a Covid foi um momento crucial na história. A cultura do escritório mudou para sempre. Milhões de pessoas perderam entes queridos, muitas vezes sem uma despedida. Mas a ideia de que os bloqueios se tornarão grandes em nossa consciência coletiva nas próximas décadas é equivocada.

O surto de gripe espanhola, que matou mais pessoas do que a Primeira Guerra Mundial, às vezes é chamado de "pandemia esquecida". Talvez o que experimentamos tão recentemente seja um dia chamado de "lockdowns esquecidos".

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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