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Monogamia é um sistema inerente ao capitalismo, afirma autora de 'O Desafio Poliamoroso'

Para Brigitte Vasallo, o debate sobre poliamor deve ir além da exclusividade sexual e incluir o senso de comunidade

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São Paulo

Para a espanhola Brigitte Vasallo, as relações que desafiam a monogamia não têm nada a ver com pegação. A autora de "O Desafio Poliamoroso", publicado no Brasil pela editora Elefante, afirma que a grande questão do poliamor vai muito além de sair com outras pessoas, acordo previamente firmado entre os integrantes de um casal. O problema, diz ela, está na ideia de casal —e no fato de essa entidade ser o centro em torno do qual a sociedade se organiza hoje.

Ao menos a sociedade capitalista, ressalta Vasallo.

Ela enxerga a monogamia como um sistema capaz de estruturar as relações de forma similar ao capitalismo. "O sistema monogâmico não se refere a quantos parceiros temos, mas ao lugar que o casal —e que a família nuclear— ocupa na sociedade", diz a autora, à Folha, por videoconferência.

Mulher de cabelos curtos, óculos, sorrindo, sentada com as pernas cruzadas em um fundo branco
Brigitte Vasallo, autora de 'O Desafio Poliamoroso' - Divulgação

A ideia de Vasallo se desenvolve a partir do pressuposto de que o amor deve ser analisado com uma lente política, na linha do mote "o pessoal é político", que regeu o feminismo dos anos 1960. A ideia também é velha conhecida da comunidade queer, que, vira e mexe, tem suas relações escrutinadas no entra e sai de governos conservadores.

A autora diz que, "o amor é considerado quase como um reduto do mundo animal e, portanto, não é algo social". Mas essa concepção é falha, avalia ela. "Só por ser algo que sentimos não quer dizer que não esteja atravessada culturalmente."

Ela exemplifica o caso dizendo que para casamentos entre dois cidadãos europeus, pouco interessa se os pombinhos estão juntos há dez anos ou dez dias, enquanto matrimônios entre um cidadão e um estrangeiro só acontecem mediante provas de que aquela relação é real. O amor, tão puro, está, na verdade, atravessado pela violência e, por isso, ela entende que a leitura política desse sentimento é essencial.

A ideia de se referir à monogamia como um sistema começou como uma brincadeira anos atrás, diz ela. Mas a frase acabou pegando, "é sexy", e ela investigou essa ideia mais a fundo. A conclusão foi de que é, mesmo, um sistema. E um bastante atrelado ao capitalismo.

O que o constitui, segundo Vasallo, é "a hierarquia de redes de apoio". O casal está no topo, ou centro, dela —o que cairia como uma luva para manter a roda do capitalismo girando. O homem da casa vai para o trabalho, a mulher cuida do lar. Ele provê o sustento, ela garante a prole. O elo sanguíneo se perpetua e a herança ganha uma linha sucessória. "Quem vai cuidar de você? Quem vai te ajudar? Quem vai te deixar dinheiro?", indaga Vasallo.

Mas um sistema não seria um sistema sem suas margens e brechas. Amantes, por exemplo, são a margem da monogamia. São personagens conhecidos —em alguma medida até tolerados e previstos—, mas "carentes de direitos e de legitimidade", afirma.

A autora entende que muitos fatores situam alguém à margem da sociedade, não apenas sua condição matrimonial. Ela, uma mulher lésbica não monogâmica, se considera "em algum lugar do centro", por ser branca e europeia, por exemplo. "Não existe estar fora do sistema. Existe a margem. E a penalização por se estar nela." E, se houvesse a opção de estar fora, não seria um sistema, diz ela.

Ela reconhece que essa estrutura social monogâmica que estuda é situada num tempo e num espaço. "É parte de uma Europa muito concreta, que se expandiu por meio de processos coloniais", afirma. E saúda nomes como Geni Nunes, psicóloga guarani que diz que o pensamento indígena também leva ao questionamento da monogamia.

As relações poliamorosas, por outro lado, são as que desafiam essa estrutura. E, para Vasallo, entra em cena o fim da hierarquia entre tipos de relação —maridos e esposas não estariam acima dos amigos, vizinhos ou da família na ordem de prioridades—, em uma ideia de fortalecimento de redes comunitárias.

"Me interessa pensar em não monogamia como o ato de preparar um prato de comida para uma vizinha com quem você não tem relação, nem é sua amiga e de quem você talvez nem goste, quando você não a vê há dias e se pergunta se ela pode estar doente", diz. "É quando não são os afetos que regem todas as suas ações de cuidado, mas a ideia de uma comunidade."

Mas tecer essas redes, que podem ir muito além de um pratinho para a vizinha, é assustador. O ciúme e o medo do abandono, os grandes fantasmas no debate sobre as relações não monogâmicas, estão presentes no pensamento de Vasallo. Ela diz que, quando a sobrevivência no sistema depende de um núcleo sexual tão restrito quanto um casal, "é impossível aceitar sem medo que seu parceiro ou parceira se relacione com outros".

Essa reação, porém, é um sintoma, não uma causa. O que não impede a tristeza dos envolvidos, diz ela, sobre seu próprio entorno.

"A liberdade tem a ver com responsabilidade sobre o que se faz, com assumir o seu impacto no mundo. Não vivemos como queremos. Prefiro pensar na possibilidade de ações, emoções e relações que temos e de que formas podemos ampliá-las."

Por ampliação, que fique claro, ela não quer dizer escancarar relacionamentos à força e obrigar casais a praticarem a não exclusividade sexual. "Se a exclusividade te traz tranquilidade nesse mundo turbulento, por favor, pratique", diz. O que ela quer é que o mundo tenha mais opções de relacionamento.

O Desafio Poliamoroso

  • Preço R$ 66 (238 págs.)
  • Autoria Brigitte Vasallo
  • Editora Elefante
  • Tradução Mar Bastos

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