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Por que desistir do amor romântico pode não ser de todo mau

Visão romantizada da vida a dois é uma construção histórica com potencial de trazer sofrimento

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São Paulo

"Nunca, nunquinha" Milene namorou, e acha que está muito bem assim. Larissa trocou um relacionamento de sete anos por uma mudança de país e de mentalidade, tomada por um senso de urgência de viver novas aventuras após a pandemia de Covid-19.

As duas pegaram rotas diferentes para chegar à mesma conclusão: a noção de relacionamento romântico, que condiciona ser feliz com estar namorando ou casado, não é para elas.

Milene e Larissa desistiram desse formato de amor, e tudo bem.

Até porque estamos falando de uma concepção cultural encorpada nos últimos séculos, e que por sinal "está dando sinais de que vai sair de cena", afirma a psicanalista Regina Navarro Lins, autora de "Novas Formas de Amar". Já vai tarde.

Milene é uma mulher branca de cabelos castanhos e longos; ela olha para a câmera e, com as duas mãos, faz um coração sobre a cabeça
A fisioterapeuta Milene Martins, 37, diz que não tem 'vontade, paciência ou planos' de namorar - Karime Xavier/Folhapress

O problema, para Lins, é alimentar falsas expectativas a partir de uma ideia que lhe parece tão estapafúrdia quanto idealizar "uma alma gêmea, a metade da laranja, ter que encontrar a pessoa certa para te completar, e nada mais vai faltar". Isso, para ela, não existe.

Algo que soa hoje deslocado porque "respeita zero a individualidade" num momento em que "homens e mulheres querem cada vez mais desenvolver seu potencial", e não se sentirem limitados por um outro. Se parece egoísmo à primeira vista, pode ser visto como um escape à obrigação de abrir mão dos seus desejos para se ajustar a uma parceria que não deixa nenhum dos lados plenamente satisfeito.

A mestranda Larissa Faria, 26, passou a adolescência romantizando a vida a dois, cortesia do tanto de livros que lia do Nicholas Sparks, de "Diário de uma Paixão" em diante. Deu no que deu: "Eu me enxergava num relacionamento monogâmico, casando com esta pessoa e passando o resto da vida com ela".

Ela precisou de uma crise sanitária global para recalcular a rota. "A reclusão da quarentena e o sentimento de ‘posso morrer em breve sem fazer tudo o que eu queria’ me fizeram querer viver novas experiências." Mudou-se para Portugal, terminou o namoro e desenvolveu certo ceticismo com enlaces a longo prazo.

Pesou muita coisa aqui. Será que juntar as escovas de dente era só um jeito fácil de "proteger patrimônio, para duas pessoas não terem que pagar dois aluguéis"? E o que dizer da monogamia, "uma construção social instituída principalmente por religião e controle de natalidade, focada em reprimir as mulheres"?

Não dá para esquecer que esse tipo de amor passa pela idealização da mulher, mas não qualquer uma, afirma a psicanalista Renally Xavier. "Na minha experiência de mulher negra, isso não acontece."

Esse modelo excludente de amor abarca outras variantes de raça, gênero e classe, e em geral a parcela feminina é a mais sacrificada. Pudera, com as muitas fábulas lançadas sobre a donzela à espera de um príncipe encantado que lhe garanta seu "felizes para sempre".

"Tem algo em crise, e ainda bem, porque esse tipo de ideal amoroso coloca um alto nível de sofrimento no sujeito", diz Xavier. Basta pensar na infinidade de filmes com uma protagonista penando para quem sabe no final encontrar um homem que a escolha. "A gente é encharcada de representações desse amor que faz sofrer."

Pressupor que a busca pelo amor romântico faz parte da natureza humana é uma falácia histórica. Em "Antropologia do Amor - Do Oriente ao Ocidente", Josefina Pimenta Lobato aponta como, na Europa do início da Idade Moderna, "de forma inédita e espantosa, as emoções e os sentimentos apaixonados, inevitavelmente imprevisíveis, incontroláveis e efêmeros, foram tidos como condição indispensável para se obter um casamento feliz e uma vida mais plena".

O Tetris conjugal, como pais selecionando com quem os filhos casam, passou a ser mal visto. Felizes eram aqueles que alcançavam um amor maior do que tudo, como o de Romeu e Julieta, criação de Shakespeare que ajudou a cristalizar o paradigma de um amor não domesticado por convenções sociais.

Essa imposição de um casal em que "o desejo de amar e de ser amado com paixão perdure eternamente", para a antropóloga, "está fadada ao fracasso, pois é uma meta impossível de ser realizada, uma vez que ignora o caráter inevitavelmente efêmero do amor apaixonado".

Entra na equação uma bola que Navarro Lins já havia levantado, e Lobato corta: essa premissa se sustenta hoje? "Atualmente, o enfoque dado ao direito do indivíduo de priorizar seus prazeres e buscá-los a qualquer custo tem trazido mais infelicidade do que felicidade em suas relações amorosas."

Uma frase do escritor Charles Bukowski vem à mente da estudante Larissa: "Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece".

Larissa joga nessa balança a tão contemporânea Fomo, "fear of missing out", sigla em inglês para o medo de ficar de fora. "Nada nunca parece ser suficiente ou satisfatório, sempre pensamos nas infinitas possibilidades."

A fisioterapeuta Milene Martins, 37, diz que não tem "vontade, paciência ou planos" de namorar, que dirá "planejar uma vida ‘eu, você, dois filhos e um cachorro’", como propõe o sertanejo Luan Santana em "Cê Topa?".

Não, obrigada. Mas sua posição amadureceu com os anos. Filha de pais que se separaram quando era bebê, Milene conta que passou a juventude sendo o patinho feio da turma. Certo dia, um colega de escola pôs um rato morto junto com um bilhetinho na sua bicicleta. "No fim da aula, estavam ele e outros meninos de tocaia pra ver minha reação e zoar mais."

Quando virou atleta profissional, "via o povo indo para a competição encontrar fulano de tal", conta. Com ela não acontecia quase nunca. Milene até teve um casinho com um rapaz. Logo apelidaram o casal de Dragão (ela) e São Jorge (ele). "Já ganhei prêmio de a mais feia da minha equipe de natação. Cresci com a autoestima destruída."

O que começou como carcaça, para se blindar da rejeição, se transformou numa boia de salvação na vida adulta, ela diz. Consolava amigos chorosos com as dores de uma relação. Sabe o quanto a mãe saiu machucada do casamento com seu pai. "Vejo poucos casais com uma vida massa. Hoje não quero, não preciso desse desgaste mental. Acho lindo nos outros, fantástico, incentivo super. Mas não para mim."

Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, diz que, se formos parar para pensar na maturidade do romantismo, lascou-se. A proposta toda o remete a um pacote teledramatúrgico que pasteuriza um amor perfeito na prática inviável. "Anna Karenina e Madame Bovary se mataram, Capitu [de ‘Dom Casmurro’] terminou mal."

Agora há o componente extra das redes sociais, que "turbinaram [a ideia] de felicidade romântica, até pela estética das fotografias, da família feliz". Narrativas concorrentes, contudo, se fortalecem no paralelo.

Para o psicanalista, "a dificuldade social de montar uma vida sem casamento e filhos foi substituída por vidas interessantes". Mais viagens, amigos, sucesso profissional. Vai caindo por terra o conceito de uma cara-metade à espera de todos nós, bem-sucedido sobretudo na heteronormatividade.

Renally Xavier lembra de uma pesquisa que detectou mais alegria e longevidade em mulheres solteiras do que nas amigas casadas e com filhos "que embarcaram no ideal de família margarina". Mas vale a ressalva: "Não estou dizendo que a gente vive sem amor. Pelo contrário, Freud diz que é preciso amar para não adoecer".

O desafio é driblar os "amores que adoecem", segundo a psicanalista. Quanto mais idealizados eles forem, maior o tombo. Aí talvez valha ficar com um post pop na internet: "Tudo o que você precisa é amor. Mas orgasmos e um pouco de macarrão não machucam ninguém". Quem está servido?

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