Policial argentina é elogiada e criticada por amamentar bebê abandonado

Oficial foi promovida por ministro em Buenos Aires, mas pediatras criticam amamentação cruzada

Mariana Versolato
São Paulo

Celeste Ayala é uma policial argentina de 27 anos. 

Casada, tem duas filhas: uma menina de sete anos e outra de um ano e meio, que ainda é amamentada. 

Quando viu um menino de sete meses, retirado de uma casa onde sofria maus tratos, chorar muito com as mãozinhas na boca, a policial perguntou a uma cuidadora do hospital se poderia amamentá-lo também.

O menino era o mais novo de seis irmãos que haviam sido levados a um hospital de La Plata, perto de Buenos Aires.

“O bebê parecia estar com fome. Muito emocionada, a cuidadora disse que, se eu quisesse, poderia fazê-lo. Dei o peito e ele se acalmou”, contou Celeste ao programa de TV argentino Crónica. 

Marcos Heredia, um colega da policial registrou o momento e publicou a imagem no Facebook. “Quero tornar público esse grande gesto de amor que você teve hoje com esse bebezinho. Sem ter dúvidas, você o tratou como se fosse seu filho, mesmo sem conhecê-lo, sem se importar com a sujeira e o cheiro”. 

A foto viralizou. 

Três dias depois, Celeste foi recebida pelo ministro da Segurança da província de Buenos Aires, Cristian Ritondo, que publicou a foto do encontro no Twitter, parabenizou-a pelo gesto de amor espontâneo e anunciou que a policial havia sido promovida. 

“Senti como se ele fosse meu. Depois me dei conta que teria que deixá-lo. Tinha que ir, mas fui com tristeza”, contou ela.

Dar o peito para outra criança que não é sua é chamado de amamentação cruzada. A prática também virou notícia em março deste ano, quando a novela “O Outro Lado do Paraíso”, da TV Globo, mostrou a personagem Susy, vivida pela atriz Ellen Roche, aceita amamentar um bebê que é filho de outra personagem.

Na época, a SBP( Sociedade Brasileira de Pediatria) divulgou uma nota contraindicando a prática, por causa do risco de transmissão de doenças infectocontagiosas, como o HIV/AIDS, para as crianças. 

“Os pediatras esclarecem que uma criança pode, sim, receber leite de outra mulher. No entanto, esse leite deve ser oriundo de doação a um banco de leite humano, onde recebe tratamento que o deixa livre de qualquer possibilidade de transmissão de doenças”, dizia a nota.

A SBP reitera ainda que, ao contrário do que foi sugerido na novela, não existe leite materno fraco.

“Ninguém vai condenar a mãe que amamenta outro bebê numa situação de urgência, há exceções, mas a regra geral é contraindicar a prática por causa dos riscos de doenças serem transmitidas. Como você garante que está tudo certo  com a saúde de uma mulher desconhecida?”, questiona Luciano Borges Santiago, membro do departamento de aleitamento materno da SBP.

Amamentar o bebê de outra pessoa é uma prática antiga, que data desde 2.000 a.C., segundo artigo no Journal of Perinatal Education. Por volta de 950 a.C., na Grécia, mulheres de maior status social frequentemente demandavam o serviço das amas de leite, que volta e meia tinham até autoridade sobre os escravos. 

No Império Romano, contratos escritos firmados com as amas de leite davam detalhes sobre o serviço, incluindo a duração da amamentação, o suprimento de roupas e o pagamento. 

Apesar de objeções durante a Idade Média e o Renascimento —havia, por exemplo, o medo de o bebê amar mais a ama de leite do que a mãe—, a prática continuou até que a mamadeira fosse introduzida no século 19. Com isso, a profissão caiu em desuso.

Mamadeiras modernas com bico somadas à maior disponibilidade do leite de animais tornaram a alimentação artificial uma escolha popular, e a medicina passou a investir em pesquisas sobre a nutrição de outras fontes que não a mãe. 

Outro fator que contribuiu para o desuso da prática foi uma mudança na aceitação social da amamentação cruzada. A apresentadora de TV inglesa Kate Garraway causou furor na mídia do país ao afirmar que achava nojenta a ideia de deixar outra mulher amamentar seu filho, mas, depois de fazer um documentário a respeito, deixaria isso acontecer —algo que muitos chamaram de repulsivo.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) afirma que crianças com menos de seis meses com desnutrição grave devem ser amamentadas pela mãe sempre que possível; caso não seja, a amamentação cruzada deve ser encorajada  —e todas as potenciais doadoras devem ser testadas para HIV.

Os bancos de leite, que recebem doações e geralmente são usados por bebês internados em hospitais, pasteurizam o leite para evitar esse risco.

Vilneide Braga Serva, do departamento de aleitamento materno da SBP, diz que antes mesmo de o HIV surgir ela já advogava contra a amamentação cruzada.

“Muitas mulheres pensam que não têm leite suficiente, que seu leite é fraco. Em vez de empoderá-las dando suporte para o aleitamento materno acontecer, a amamentação cruzada tira a possibilidade de elas acreditarem que podem amamentar seus filhos e criar esse vínculo.”

Santiago toca no mesmo ponto. “Claro que a decisão sobre o aleitamento é da mulher, mas nosso papel é dar orientação para a mãe, especialmente no primeiro mês, e oferecer o menor risco possível. A amamentação deixou de ser instintiva e hoje precisa de estímulo.”

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