A impressão é de morar em um novo corpo, diz transplantada

Aos 23 anos, a enfermeira paulistana Lilian Alencar descobriu doença cardíaca

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São Paulo

Aos 23 anos, a enfermeira paulistana Lilian Alencar, 36, descobriu uma doença cardíaca durante os exames admissionais, que evoluiu para insuficiência cardíaca.

Em uma internação em Macaé (RJ), onde mora, teve 21 paradas cardíacas. Trazida para o InCor, em São Paulo, numa UTI aérea, ficou três meses à espera de um novo coração.

Fez o transplante cardíaco em setembro de 2017 e, desde então, passou a treinar natação e, em agosto próximo, representará o Brasil nas Olimpíadas dos Transplantados, na Inglaterra.

"Descobri meu problema cardíaco por acaso em 2006, quando passei em primeiro lugar em um concurso público. Eu tinha recém-terminado a faculdade de enfermagem e já tinha um emprego dos sonhos.

Eu e minha família estávamos muito felizes. Mal sabíamos que a felicidade seria breve e que o desespero tomaria conta de nossas vidas.

Meu eletrocardiograma, no exame admissional, teve alterações e o médico disse para eu fazer um ecocardiograma. Fiz o exame, que constatou que eu tinha miocardiopatia dilatada, uma doença grave, sem cura, progressiva e sem causa definida.

Como se não bastasse, constataram que eu também tinha arritmias malignas, capazes de virar parada cardíaca a qualquer momento. Tive que colocar um desfibrilador implantável (aparelho que ressuscita em caso de parada cardíaca por meio de choque).

Foi tudo muito difícil de assimilar, para mim e para os que convivem comigo. Tinha uma lista enorme de medicações a tomar —para sempre. Eu estava começando na profissão e estigmatizava que aquelas medicações eram só para pacientes idosos, graves, etc. Por que que eu, aos 23 anos, tinha que tomar aquilo?

Durante os 11 anos seguintes ao diagnostico convivi com a insuficiência cardíaca causada pela doença. Os piores sintomas eram o cansaço e a falta de ar aos pequenos esforços. Aos poucos, coisas do dia a dia, como tomar banho e lavar louça, provocavam cansaços enormes!

Com a evolução da doença, ao acabar de arrumar minha cama, parecia que tinha acabado de fazer uma corrida.

Ter ICC (insuficiência cardíaca congestiva) é contar o quanto de liquido que você toma por dia para não encharcar o pulmão. É seu sobrinho chorar quando bebê e não poder pegá-lo no colo porque não pode pegar peso. Ou vê-lo crescer e não poder brincar com ele porque sente falta de ar.

É chegar ao trabalho em desvantagem em relação aos outros colegas porque, diferentemente deles, antes mesmo de começar a trabalhar, você já está cansado. É faltar a compromissos porque você está prostrado devido à desidratação causada pelo caminhão de diuréticos que você tem que tomar.

É querer dançar e nunca conseguir chegar ao fim da música. É saber que a qualquer hora pode ter uma parada cardíaca e ter medo.

É não ter estereótipo de portador de doença grave e, com isso, contar com a indiferença e a desconfiança de muitos quanto as suas reais limitações. "Ela realmente não consegue ou é preguiça?"

É deixar de conhecer a casa dos amigos por ter escadas. É ver uma mulher correndo na praia, fechar os olhos e imaginar, só por um instante, que é você que está ali, no lugar dela.

De 2006 até 2017 vi os sintomas piorando a largos passos. Mas foi dia 01 de julho de 2017 o meu 'último dia bom'. Estava em casa e já não me sentia nada bem. Tinha ido ao médico um dia antes.

Pulmões com líquido, fígado inchado, falta de ar. Saí de lá com mais remédios ainda, chegando à marca de 20 comprimidos por dia.

Não deu tempo de comprar os medicamentos novos. Levantei com falta de ar. Chegou um momento que o ar simplesmente não entrava. Suava frio. Olhei meus dedos, estavam ficando roxo. Eu, como enfermeira, já sabia o que estava acontecendo: estava entrando em choque cardiogênico e, se não chegasse logo a um hospital, ia morrer.

Fiquei uma semana na UTI em Macaé (RJ), onde moro. Nessa internação, tive 21 paradas cardíacas. Com muito esforço da equipe de enfermagem, médicos e fisioterapeutas, conseguiram me estabilizar e fui transferida para o InCor (Instituto do Coração) em São Paulo em um jato-UTI, já que minha única chance agora era um transplante. 

No InCor fiquei três meses internada na UTI dependendo de um aparelho que fazia meu coração bater mais forte até o novo coração chegar.

Eis que na manhã do dia 15 de setembro de 2017, um médico entra no meu quarto e diz: 'Temos um coração para você!' Eu gritava de felicidade. A impressão era que eu ia explodir de tanta felicidade. Liguei para todos que eu amava, eram 7h da manhã. Todos choravam de emoção. Quem estava em Macaé foi para São Paulo. Quem já estava em São Paulo, foi para o hospital.

Em algum lugar, alguma família estava autorizando a captação de órgãos do seu ente querido, talvez sem ter a noção do tamanho do bem que estavam fazendo. No momento em que assinaram aquele papel, salvaram a minha vida e mais sete pessoas.

Foi a melhor notícia que eu já recebi na minha vida! A notícia de que eu não iria morrer, eu ia ser salva, finalmente teria uma vida digna.

Desde que eu cheguei em casa, vivo um sonho. Às vezes, fico rindo sozinha. Não acredito que tomo banho, arrumo a casa, ando na esteira, converso no celular, tudo isso, sem cansaço, sem falta de ar. A impressão é de que eu estou morando em um novo corpo.

Comecei a praticar natação e em agosto deste ano irei representar o Brasil nas Olimpíadas dos Transplantados (World Transplant Games-WTG), que são organizadas pela Federação Mundial de Jogos de Transplante, uma organização mundial com representação de mais de 70 países que, desde 1978, celebra transplantes bem-sucedidos e a vida como um presente.

Para este ano, New Castle (Inglaterra) foi a cidade escolhida para sediar o evento. A delegação brasileira conta com 19 atletas transplantados. É mais um sonho poder participar desse evento único e inspirador."

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