Descrição de chapéu Coronavírus

Autor de 'Contágio' diz que pecuária, tráfico de animais e até celular elevam riscos de novos vírus

Obra do americano David Quammen, lançada em 2012, começa a ser publicada em português

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São Carlos (SP)

Porcos tossindo com tanta intensidade que o barulho se faz ouvir a mais de um quilômetro de distância dos chiqueiros. Dezenas de corpos de gorilas acumulados num canto remoto da floresta, enquanto o resto da mata, antes repleto desses grandes símios, torna-se um vazio. Cavalos agitados, salivando espuma e sangue, que morrem após poucas horas de agonia.

Essas e outras histórias de horror, narradas no livro “Contágio”, do escritor americano David Quammen, são diferentes nos detalhes, mas um fio condutor as une: todas começam quando um vírus antes desconhecido salta de uma espécie (via de regra, a que funcionava como reservatório natural do parasita) para outra, com consequências potencialmente catastróficas.

O mesmo fenômeno, conhecido como “spillover” (algo como “transbordamento” em inglês) foi o responsável por produzir a atual pandemia de Covid-19, cujo causador, o vírus Sars-CoV-2, provavelmente se originou em morcegos asiáticos e conseguiu se adaptar ao organismo humano.

Aliás, Quammen, 72, certamente não ficou surpreso ao saber da identidade do novo vírus pandêmico. Lançado originalmente em 2012, seu livro já falava da importância dos morcegos como reservatórios virais e do papel dos vírus respiratórios nas pandemias ao longo da história.

Por ora, a editora Companhia das Letras, está lançando a obra de Quammen por partes, em formato eletrônico. Já foram publicados dois “fascículos”: “Jantar na Fazenda de Ratos” (sobre o coronavírus causador da doença respiratória Sars) e “Tudo Depende: O Comportamento Humano e as Pandemias”. Mais duas partes devem chegar às lojas virtuais de ebooks até o fim de maio. O plano é publicar o livro inteiro ainda neste ano.

Quammen conversou com a Folha sobre a dificuldade de barrar o tráfico de animais silvestres, que coloca tanto bichos quanto seres humanos em risco, e sobre o papel da pecuária industrializada na potencialização do problema.

David Quammen, autor do livro 'Contágio', em Nova York - Robert Caplin - 17.out.2012/The New York Times

Questionado sobre os mistérios relacionados à origem de epidemias em animais que ainda não foram bem elucidados, o escritor respondeu: "Talvez o maior mistério seja o de ainda elegermos líderes como Trump e Bolsonaro".

Na década passada, o sr. esteve em restaurantes chineses onde as mais variadas espécies de animais selvagens eram servidas. Muita gente já sabia do elo entre esses restaurantes, os “mercados molhados” que vendem animais vivos e epidemias anteriores, como a da Sars, mas mesmo assim o Sars-CoV-2 acabou emergindo. Por que é tão difícil eliminar esse tipo de comércio?
Pretendo visitar a China para tentar investigar isso pessoalmente, mas a resposta mais razoável é que muito dinheiro flui por esse mercado. Ainda existe um comércio muito movimentado de pangolins [animal que carrega formas de coronavírus similares ao da atual pandemia], que estão ameaçados de extinção e são levados da Malásia para a China, por exemplo.

Desde 2003, quando houve o surto original da Sars, os chineses tentaram suprimir esse comércio, mas ele acabou se tornando um mercado negro e, mais tarde, voltou a ser praticado às claras. Em 2009, quando eu visitei o país, você não via mamíferos selvagens, como civetas [pequenos carnívoros que lembram felinos] ou porcos-espinhos, sendo vendidos às claras, mas ainda era possível obter esse tipo de carne num caminhão que parava em determinado lugar à noite ou pela porta dos fundos de um restaurante.

Por outro lado, quando ouvimos falar desses “mercados molhados”, é preciso lembrar que muita gente compra galinhas, patos e frutos do mar neles, um tipo de comércio que é totalmente legítimo e não tem a ver com o tráfico de animais.

Em 2004, polícia chinesa confisca civetas (um dos reservatórios do vírus da Sars) em um mercado em Guangzhou; cerca de 10 mil bichos foram mortos
Em 2004, polícia chinesa confisca civetas (um dos reservatórios do vírus da Sars) em um mercado em Guangzhou; cerca de 10 mil bichos foram mortos - Reuters

Isso significa que as consequências negativas de ficar chamando o Sars-CoV-2 de “vírus chinês” e de reforçar o estigma em torno das práticas de países orientais podem acabar aumentando os riscos de pandemias futuras, já que se cria um incentivo para que haja menos transparência sobre esses problemas?
Sim, é algo que causa mais mal do que bem. Não ajuda muito ficar falando do “vírus chinês” ou do “vírus de Wuhan”. Em 1918, em vez de falar da “gripe de Kansas”, o local onde a pandemia começou nos EUA, o termo que pegou foi “gripe espanhola”, na verdade bastante enganoso. O que precisamos entender é que essas doenças fazem parte de um padrão muito mais amplo.

Quando qualquer um de nós consome carne, madeira, combustíveis fósseis ou minerais estratégicos, estamos colocando ecossistemas naturais sob pressão e aumentando a probabilidade de que um vírus perigoso chegue aos seres humanos. Basta ter um celular. Os aparelhos que usamos contém metais obtidos a partir do coltano, um mineral existente no leste da República Democrática do Congo. A mineração do coltano faz que com muita gente acabe tendo contato com os animais que são reservatórios do vírus Ebola, ou de outros vírus potencialmente letais.

Já há pessoas defendendo que o melhor é deixar que o Sars-CoV-2 se espalhe o mais rápido possível porque isso vai favorecer o aparecimento de cepas menos perigosas. Segundo elas, o vírus, para se adaptar aos novos hospedeiros humanos, vai evitar causar danos sérios. Não existe nenhuma garantia de que o processo vai funcionar desse jeito, certo?
É uma ideia que não tem apoio nenhum, nem do ponto de vista histórico nem do ponto de vista científico.

No livro, eu conto o que aconteceu com o vírus da mixomatose, que afeta coelhos e foi usado para tentar controlar a população desses animais na Austrália. A mortalidade que ele causa se estabilizou em torno de 70% mesmo após décadas de evolução.

No caso de um vírus como o da atual pandemia, se você não fizer nada para tentar diminuir a transmissão, o que vai acontecer é que não haverá pressão para que ele evolua, já que vai conseguir se espalhar com muito sucesso. E, de fato, é o que estamos vendo por enquanto: não há sinais de evolução molecular do coronavírus, o que mostra o quão bem-sucedido ele está sendo.

É possível afirmar que os eventos mais arriscados envolvendo o aparecimento de novos patógenos são os ligados a espécies selvagens? Ou a criação industrial de animais pode ser tão arriscada quanto o tráfico de mamíferos silvestres?
Não sei se é possível dizer que o risco é o mesmo, mas a criação de animais em escala industrial certamente é parte do problema. Sabemos que ela é a fonte de muitos vírus perigosos, como o Nipah [que emergiu na Malásia em 1998, matando 105 pessoas e levando ao sacrifício de 1 milhão de porcos] e a própria gripe de 1918, ambos ligados a hospedeiros suínos.

Ao criar animais em imensas concentrações de indivíduos, estamos realizando o equivalente a acumular grandes quantidades de madeira e folhas secas numa floresta. É um combustível capaz de deflagrar um incêndio florestal com grande velocidade se as circunstâncias forem favoráveis para isso.

Quais os mistérios sobre a origem de epidemias em animais que ainda não foram bem elucidados?
Sempre teremos muita a coisa a aprender com esses eventos, mas acho que não há exatamente algum mistério científico profundo sobre o tema ainda não elucidado. Provavelmente o ponto mais importante tem a ver com o objetivo de deter esses contágios entre animais e seres humanos antes que eles se transformem em epidemias e pandemias. E isso vai depender de avanços científicos, tecnológicos e de cooperação internacional que ainda não aconteceram.

No livro eu menciono, por exemplo, um pesquisador que estava tentando desenvolver sistemas capazes de detectar com precisão quem está carregando um novo vírus durante uma checagem de rotina num aeroporto, algo que poderia ser resolvido em dez minutos. Ainda não temos isso, o que provavelmente tem a ver com falta de financiamento. Talvez o maior mistério seja o de ainda elegermos líderes como Trump e Bolsonaro.

Existe muita especulação sobre como a atual pandemia vai mudar o mundo. Na sua opinião, é possível ter esperança de que as pessoas finalmente entendam que a destruição ambiental é o principal mecanismo por trás do aparecimento de novos vírus letais?
Eu acho que sim, pelo simples fato de que o horror, a morte e — é triste dizer isso, mas é verdade —o custo em dinheiro do que está acontecendo vão ser muito difíceis de ignorar.

Aqui nos EUA, por exemplo, o governo está gastando US$ 3 trilhões em auxílio para empresas e trabalhadores. É imensamente custoso. Estar preparado para enfrentar uma pandemia é caro, e as lideranças políticas, por miopia, podem achar que não vale a pena gastar com isso quando existe a chance de não acontecer nada durante seu mandato, mas o que estamos vendo é que o custo de não estar preparado é absurdamente mais alto.


Raio-X

David Quammen, 72, nasceu em 1948 nos Estados Unidos e estudou em Yale e Oxford. Escreveu alguns livros de ficção antes de se dedicar ao mundo natural. "Contágio", lançado em 2012, foi finalista de sete prêmios e recebeu dois deles: Science and Society Book Award, da Associação Nacional de Escritores de Ciência, e o Society of Biology (Reino Unido) Book Award em Biologia Geral. Contribuiu para a revista National Geographic e foi professor da Montana State University.

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