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Sanitarista Gonzalo Vecina Neto defende fila única de leitos do SUS e da rede privada

Professor de saúde pública da USP diz que país está perdendo a batalha da comunicação sobre isolamento

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São Paulo

Uma das referências no país em políticas de saúde, o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, 66, defende que, diante do esgotamento de vagas de UTI no SUS, haja utilização compartilhada dos leitos do setor privado, uma espécie de fila única.

Ele acredita que a proposta seja possível por meio de diálogo mas, se não for, o estado deveria requisitar os leitos privados. “Você tem leitos subutilizados no setor privado. Não tem por que não fazer isso se você tem gente morrendo por falta de leitos de UTI”, diz ele, que foi secretário municipal da Saúde de São Paulo entre 2003 e 2004, na gestão de Marta Suplicy (hoje do Solidariedade, na época do PT), e presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) entre 1999 e 2003, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Em alguns locais do país, hospitais privados têm sido obrigados pela Justiça a abrir vagas a pacientes do SUS sem qualquer remuneração. Com isso, a rede privada passou a inventariar leitos de UTIs disponíveis para oferecê-los em negociação com o setor público.

Vecina afirma que o setor privado deveria ter oferecido esses leitos espontaneamente. “Existem grupos resistindo. Para eles, esse leito é de quem paga. Isso é uma desnaturação sem tamanho”, diz ele, professor da USP e da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Na sua opinião, o país tem dificuldade para trabalhar com grupos vulneráveis. “Isso tudo aflora num momento como esse. Mas não há razão para surpresas. É assim que a sociedade trata os frágeis, esperando que eles se escafedam.”

Gonzalo Vecina Neto, professor da faculdade de saúde pública da USP e da FGV (Fundação Getúlio Vargas) - Divulgação

O sr. tem defendido fila única de leitos públicos e privados de UTI frente à pandemia. Como seria isso?
Já está acontecendo o fim dos leitos públicos em capitais como Manaus, Fortaleza e Belém. Eu sempre achei essa história de hospitais de campanha uma coisa complicada. Custa caro levantar, é inadequado para operar, sobra depois e não tem o que fazer com aquilo. Você tem leitos sobrando no setor privado, os hospitais estão subutilizados em razão do isolamento social. É muito irracional [não utilizá-los] ainda mais num contexto em quem você vê gente morrendo por falta de leito.

Não vejo razão para não se discutir a utilização compartilhada dos leitos do setor privado.

E se não houver diálogo?
No limite, numa situação de crise, seria requisitar os leitos mesmo. Não tem por que não fazer isso se você tem gente morrendo por falta de leitos de UTI.

Já existem iniciativas?
Tenho notícias de que pelo menos dois estados estão fazendo atividade nesse sentido, o Espirito Santo e no Paraná.

Recebi o decreto municipal de Curitiba que faz a requisição do leitos, informa o valor que será pago por paciente/dia e como será o passo a passo. Achei bastante civilizada a proposta. É real, factível. A prefeitura fez o decreto pautado pela legislação publicada em fevereiro, a lei da segurança sanitária. Tem arcabouço legal para sustentar.

É claro que não se cria uma solução dessas com fórmula mágica. Temos um modelo muito fragmentado de atenção a saúde no país todo. Num momento como esse, a gente vê que tem leitos de UTI de municípios, de estados e os privados, todos descoordenados. OK, vamos então vamos requisitar leitos do setor privado. Mas quem, cara pálida? O município, que tem gestão plena, ou o estado que está preocupado neste momento com uma briga política entre o governo federal e o governo estadual? Essa coisa não se resolve do dia para noite. Eu defendo a contratação de leitos no setor privado, mas eu sei que existe uma dificuldade política para resolver esse conflito.

Países que já fizeram isso, como Espanha e Irlanda, tiveram mais facilidade? 
Claro que sim. Esses países têm um setor privado pequenininho, não é como aqui que ele responde por 25% da população. A média dos países europeus com sistemas universais de saúde varia entre 5% e 10%.

Mesmo assim, eles foram buscar leitos no setor privado. Aqui no Brasil, o número de leitos no setor privado é maior que o total de leitos SUS, contando os estaduais, os municipais e leitos contratados no setor privado filantrópico ou não.

Há quem aponte viés ideológico na proposta...
Não estou pensando ideologicamente. Estou pensando na crise, na pandemia e na mortalidade.

Eu esperava que houvesse um comportamento do setor privado de oferecer essas vagas, mas existem grupos resistindo. Para eles, esse leito é de quem paga. Se vier aqui um paciente que paga e um paciente que o SUS está mandando, vai ser atendido o que paga primeiro, independentemente do lugar na fila. Isso é uma desnaturação sem tamanho. É inacreditável que não consigamos enxergar o quão evidentes são essas questões éticas no meio de uma crise sanitária desse porte.

Além da resistência do setor privado, há silêncio do governo federal. Por quê?
Qualquer manual de crise começa dizendo que a coisa mais importante para enfrentá-la é ter liderança. Nós não temos. É óbvio que num país federativo tem que ter uma liderança para conseguir tirar de onde tem e colocar onde está faltando, coordenar.

Os estados estão isolados. Parte do que está acontecendo no Amazonas é culpa do Amazonas. O prefeito não conversa com o governador, o secretaria da saúde é frágil. No Ceará, prefeito e governador conversam, mas as condições locais são mais difíceis.

O fato é que nós, no Brasil, temos uma dificuldade grande para trabalhar com o que é frágil. Não tem política adequada para os velhos, para os portadores de deficiência, para os pobres, os negros, os índios. Isso tudo aflora num momento de crise. Você chega à Brasilândia e é aquele desastre. E as pessoas ficam surpresas. Não há razão para surpresas. É assim que a sociedade trata os frágeis, esperando que eles se escafedam.

Qual será o impacto da pandemia nos mais vulneráveis?
Eu acho que o isolamento social produziu algum sucesso no achatamento da curva. A suspensão das aulas também diminuiu a circulação de outros vírus que produzem doenças respiratórias esperadas neste momento.

Os críticos do isolamento social são cegos ou idiotas. O caminho é manter isso por mais algum tempo. Na periferia, onde a pandemia está chegando agora, o achatamento foi irrelevante. Vai ser um desastre se a gente não testar e não tiver onde isolar esses pacientes. Vamos ter um número maior de casos e de mortes, com certeza.

Mas ainda faltam testes... 
A falta de testagem nos deixou meio cegos. Mas ter o teste é metade do caminho. Temos que ter capacidade de processamento, o que ainda não temos no volume necessário. Se eu não testo o cara sintomático, os contatantes de primeiro grau dele e os contatantes de segundo grau dos sintomáticos dessa primeira testagem, eu não consigo diminuir a velocidade de disseminação da pandemia.

O isolamento está perdendo força. Como manter as pessoas em casa? 
Difícil isso, acho que estamos perdendo a batalha da comunicação. As pessoas não estão conseguindo enxergar o que está acontecendo de fato. Primeiro, em razão do negacionismo de parte dos nossos gestores, particularmente os federais. Quando você fala para uma pessoa o que ela quer escutar, ela fica muito feliz, é óbvio.

E é inacreditável vermos médicos, infectologistas até, defendendo o fim do isolamento sob o argumento que a economia é mais importante. Como recuperar essa batalha? Não sei. Se a gente retomar as atividades, por mais cuidadoso que isso seja, haverá reflexo no número de mortes.

A pandemia se alimenta de encontros, e a gente está demorando muito para aceitar o uso da máscara. Eu mesmo achava que a máscara dava uma falsa sensação de segurança. Demorou para cair a ficha de que se o outro se proteger e você proteger o outro, os dois estarão protegidos.

Qual o principal desafio daqui para frente?  
Passar essas próximas duas semanas. Espero que a gente aumente o número de testes. Mas tem um ruído muito ruim que foi essa pressão feita em cima da Anvisa pela liberação dos testes rápidos. A Anvisa liberou um monte de porcaria.

Qual o risco disso?
É desacreditar um instrumento que poderia ser muito importante. Os testes imunológicos têm pouca importância numa pandemia dessa porque eles me dizem quem está defendido [imunizado]. Não me diz quem está em condição de disseminar o vírus, isso só o PCR [teste molecular] que faz.

Os testes rápidos têm uma quantidade importante de falso positivo, muita gente vai se considerar protegida e não estará. Do total de testes, mais de 40, só tem um validado.

Alguns caras dizem que é melhor jogar cara ou coroa do que fazer esses testes.



Raio-x

Gonzalo Vecina Neto, 66. é médico sanitarista. Graduado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí, é mestre em administração pela FGV (Fundação Getúlio Vargas). Já atuou como secretário municipal de Saúde de São Paulo na gestão de Marta Suplicy (então filiada ao PT), presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e superintendente do Hospital Sírio-Libanês. É professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e da FGV

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