Luto prolongado passa a ser doença psiquiátrica a partir de 2022

Sofrimento causado pela morte de entes queridos na pandemia tende a ser mais complicado

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São Paulo

No período de um ano, o engenheiro agrônomo Ricardo Guze, 44, perdeu o pai, o sogro e uma tia por complicações da Covid-19. O irmão e um tio também morreram por outras doenças. Lidar com tantas mortes e cuidar da mãe viúva e debilitada por sequelas da infecção pelo coronavírus o fizeram sucumbir.

"Parecia um facão vindo e levando todo mundo. No início, eu segurei a bronca toda, mas minha vida virou de ponta-cabeça. Fui ficando muito ruim, uma síndrome do pânico, coração disparado e uma depressão muito forte. Não queria sair de casa, ver ninguém", conta Guze, que toma antidepressivos e iniciou atividade física por recomendação médica.

A contadora Michelle Bressiani, 36, perdeu o pai e a mãe por Covid em um período de 15 dias, e tenta reconstruir a vida também coma ajuda de medicamento, terapia quântica e espiritismo. Ela se mudou do apartamento onde vivia com os pais por não suportar a ausência física deles.

"O mais difícil para mim é aceitar a maneira abrupta com que eles se foram. Tô tentando de tudo para acalmar um pouco o coração, não chorar tanto. Se eu não acreditasse no espiritismo, já tinha feito uma loucura. Mas acredito que eles estão junto comigo, me ajudando a ficar bem", diz.

A contadora Michelle Bressiani, 36, com a irmã Alexandra, que mora em Florianópolis, que vivem o luto dos pais - Adriano Vizoni/ Folhapress

As mortes na pandemia de Covid-19 aceleraram uma recomendação que já vinha sendo discutida há anos pela área da saúde mental: a partir do próximo ano, o luto prolongado passa a ser um transtorno psiquiátrico nas novas versões do manual de diagnósticos de transtornos mentais (DSM-5) da Associação Americana de Psiquiatria e da CID-11 (Classificação Internacional de Doenças).

Assim como Guze e Bressiani, a maioria das pessoas enfrenta momentos difíceis após a morte de um ente querido, mas com o tempo aceitam a perda e encontram um sentido para a vida. Uma parcela delas, porém, não consegue resolver esse luto.

"Algumas perdas têm uma intensidade maior ou mais prolongada do que o esperado. Essas agora serão reconhecidas como doença, algo que está atrapalhando a vida. É importante reconhecer isso porque só é possível tratar aquilo que estiver dentro da CID", explica a psiquiatra Tânia Maria Alves, que coordena o ambulatório de luto do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Segundo ela, a depressão é um dos sintomas do luto, mas não é o mais comum. Os mais frequentes são os cardíacos, como arritmias e hipertensão, e o uso de substâncias psicoativas. "O luto pode ser complicado tanto pela intensidade quanto pelo tempo. Fica arrastado, não passa. Nesse momento, recebe o nome de prolongado. Enquanto não recebe esse nome, vai ter o nome da reação que a pessoa tiver, como arritmia" diz ela.

E o que define um luto prolongado? "Muito sofrimento e falta da pessoa que morreu, ter pensamentos constantes sobre ela, uma procura pelo outro incessante, uma angústia muito grande quando fala a respeito dele, isolamento social. E as campeãs são as doenças somáticas". afirma a psiquiatra.

Na sua opinião, quando não é feita a elaboração do luto, a dor psíquica se transforma em somatização. Um exemplo é a síndrome do coração partido, que provoca sintomas semelhantes ao infarto, especialmente em idosos. Nos adultos mais jovens, são relatadas arritmias, hipertensão, gastrites, alteração de pele.

Pelos critérios da CID, esse conjunto de sofrimentos precisa durar no mínimo seis meses para ser considerado luto prolongado. Para o DSM, o tempo é de um ano ou mais.

"Um ano é o tempo em que a pessoa vive pela primeira vez as grandes datas expressivas que evocam a falta da pessoa", explica a psicóloga Maria Helena Franco, professora da PUC-SP e autora do livro "O Luto no Século 21" (Summus Editorial), que trata sobre os diversos tipos de luto, recursos para o diagnóstico e modos de intervenção terapêutica.

Segundo ela, a nova definição procura diferenciar o luto da depressão para que não seja tratado da mesma forma, embora alguns sintomas se assemelhem. Um debate que vem sendo feito no meio é se a nova classificação não irá exacerbar a medicalização do luto.

"A patologização do luto já existe. Tem gente que vê a pessoa chorando há uma semana e acha que tem que prescrever um antidepressivo. É importante acompanhar o processo. Avaliar não só os fatores de risco, mas também os fatores de proteção, a rede de apoio", diz Franco.

Segundo Tânia Alves, essa foi uma das razões da demora em considerar o luto uma doença. "Diziam: ‘isso não é uma doença, todo mundo tem, todo mundo vai ter em algum momento na vida’.

Para ela, o tratamento vai depender dos sintomas e do quanto eles atrapalham a vida da pessoa. Não há uma solução única ou que seja igual para todos.

"Se a complicação for a hipertensão, você não vai tratar? Se a complicação for o isolamento, a pessoa não quer se relacionar com mais ninguém, entra na área da psicoterapia. Se a pessoa passa a usar muitas substâncias ou para de comer e se torna anorética, entra na psiquiatria."

Antidepressivos, segundo a médica, só devem ser usados se a complicação do luto for de fato uma depressão. "A dor psíquica também é tratada com antidepressivos, mas com dosagens menores."

Segundo as especialistas, durante a pandemia, o risco de um luto se complicar e se prolongar tem sido maior. Alguns estudos mostram que em situações normais, os enlutados têm de 4% a 10% de chances de evoluírem para um luto complicado. Numa situação de pandemia, isso pode chegar a 70%.

"Se a perda foi rápida e inesperada, o cérebro não tem tempo de elaborar. É uma pancada, um grande estresse, a pessoa se sente em choque. Hoje, na CID, isso se chama reação aguda ao estresse. Se passou de seis, vai se chamar agora luto prolongado", explica Tânia Alves.

De acordo com ela, o fato de as pessoas não terem tido espaço para elaborar a morte pela Covid é um outro complicador, assim como a falta de suporte.

"A impossibilidade de ritualização da morte por conta das medidas de distanciamento e a morte repentina e inesperada de pessoas jovens, saudáveis e em idade produtiva também tendem a a agravar a evolução dos quadros de luto", explica o psiquiatra Rodrigo Martins Leite, também do IPq .

A culpa também pode ser um outro fator complicador. "Se eu levei [o vírus] para casa e perdia a minha mãe, aquele luto terá dificuldade de resolução porque a culpa é real", diz Tânia Alves.

"Os enlutados durante a pandemia deveriam ser avaliados para saber se estão em lutos complicado imediatamente para serem avaliados e seguidos. É o modelo seguido pelos países que levam o luto a sério."

O psiquiatra Rodrigo Martins Leite lembra que o fenômeno do luto não pode ser dissociado do contexto em que ocorre. "A pandemia potencializou a vulnerabilidade social. Desta forma, as reações de luto podem se tornar persistentes."

Além da morte em si, fatores geradores de estresse como desemprego, problemas financeiros e insegurança tendem a interferir na resolução do luto. "O impacto econômico para as famílias que perderam pessoas que estavam trabalhando é um problema que deveria ser incluído como prioridade na agenda das políticas de assistência social."

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