Hermano Vianna

Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

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Hermano Vianna
Descrição de chapéu indígenas

Brasil ainda não começou trabalho de luto da pandemia

Perdemos pessoas de sabedoria sem igual, muitas vezes as últimas que detinham conhecimento de seus povos

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A revista francesa Philosophie Magazine completou 15 anos em abril de 2021. Isso é certamente uma vitória no ambiente extremamente turbulento da mídia no nosso século. A tiragem gira em torno de 65 mil exemplares impressos. Mas a "influência" é bem maior, trabalhando firme para manter o charme mundial do pensamento produzido nos arredores da Sorbonne.

Alexandre Lacroix, autor de "Como Viver Quando Não se Acredita em Nada", é o diretor de Redação da Philomag desde 2006. A cada número, ele assina um editorial que tem mais pinta de crônica, ou microensaio.

Em junho de 2020, Alexandre Lacroix publicou seu texto mais ousado, que não saiu mais do meu coco (viva Caetano!) durante o resto interminável de nossa convivência trágica com o "novo coronavírus". Difícil classificar: talvez seja uma carta-ficção-científica, datada de 2120.

Descreve o "Grande Cisma" que ocorreu durante a pandemia de um século antes. Quando a situação foi controlada, parte da humanidade decidiu inventar novas maneiras para continuar vivendo confinada, longe das ruas aglomeradas (até porque —também aprendemos recentemente— as ruas não mais representam "as ruas"). Nasceu o povo "dos confins" (não confundir com o aeroporto mineiro).

Quando pessoas muito queridas me falam que querem "suas vidas de volta", sinto um calafrio, entro em pânico. Fico até em dúvida: será que sou —ou me transformei em— alienígena ou cidadão "dos confins"? Do que realmente sinto falta quando penso no velho e cada vez mais distante normal? Sim, abraçar tranquilo gente amiga. O que mais não posso viver sem?

Penso em "Luto e Melancolia", texto de Freud. Nem começamos ainda o longo, complexo e delicado trabalho de luto coletivo. Não enterramos respeitosamente milhões de pessoas que morreram, não só vítimas da Covid-19, durante a pandemia.

As redes de apoio que nos confortam nesses momentos tão terríveis não funcionam por Zoom ou via emoticons. Vamos fingir que não perdemos nada e correr para agarrar promessa fake de normalidade?

Por que tanta pressa? Pressa de quê? Turbinar o mercado? Precisamos "desenvolver" o quê? Pistas de dança em paraísos fiscais embaladas pelo som das motosserras? Mais pandemias, mais crises climáticas com tempestades de areia e fome varrendo o país, o mundo? Correria frenética para quê?

Seria mais sensato usar a temporalidade diferente imposta pela pandemia para imaginarmos com mais firmeza e determinação maneiras de lidar com —volto a citar o Reflorestarmentes, "chamamento" da articulação das mulheres indígenas— "a sobreposição sem precedentes de emergências" do mundo contemporâneo.

Faço parte do coletivo curatorial que prepara a edição deste ano da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Realizamos nesta semana, em parceria com o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, nosso Ciclo de Homenagem, que dedicou atenção especial para indígenas vítimas fatais da Covid-19.

Era parte do trabalho de luto, que necessita ser aprofundado em muitas frentes. O Brasil precisa ter consciência cada vez mais clara da enorme dimensão da tragédia que caiu sobre todo(a)s nós. Perdemos mestras e mestres de sabedoria sem igual, muitas vezes as únicas pessoas ainda detentoras desses saberes em seus povos.

Pessoas que guardavam em suas memórias muito da literatura oral em línguas cada vez mais ameaçadas, gente que sabia usar palavras e plantas em regime de dádiva, em práticas de cura, cura em todos os sentidos. Pena que não tiveram o reconhecimento que mereciam, que não lançaram os livros que poderiam divulgar seus conhecimentos. Ainda há tempo para reverter isso.

É possível conhecer melhor muitas dessas pessoas visitando o belo site Memorial Vagalumes, que inspirou nossa homenagem na Flip. Entre elas, penso sempre em Maria de Lurdes, do povo mura.

Márcia Mura enviou o seguinte depoimento para o Memorial Vagalumes: "Com a grande inundação do rio, causada pela construção das hidrelétricas, ela passou a ter que fazer mudas de todas as plantas para salvá-las. Desde então, ano após ano, quando vinha a grande cheia, ela tirava muda por muda, planta por planta, e colocava todas num lugar alto. Quando a água descia, ela replantava tudo novamente no seu quintal".

Quem vai cuidar das plantas de Maria de Lurdes na próxima cheia? Quem vai ter esse carinho, essa calma, para copiar sua coreografia vegetal, quando "tirava muda por muda", subia e descia, refazia seu quintal? Ela "sempre tinha uma planta para fazer o remédio certo".

Utopia desesperada: manter aquele quintal funcionando como nossa melhor farmácia. Missão/mutirão para todo(a)s nós. Remédio para todo(a)s nós.

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