TCU vê dano aos cofres públicos em caso de confirmação de veto a kit Covid

Prejuízo seria com todo o gasto com drogas sem eficácia comprovada contra a doença; Ministério da Saúde não comenta

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Brasília

O TCU (Tribunal de Contas da União) aponta, em um relatório da área técnica, a ocorrência de dano integral aos cofres públicos caso se confirme a invalidade das orientações do Ministério da Saúde para uso de drogas como cloroquina e azitromicina contra a Covid-19.

O chamado kit Covid não tem eficácia comprovada para tratar a doença e, mesmo assim, foi o carro-chefe de Jair Bolsonaro (PL) durante a pandemia. Entusiasta da cloroquina, o presidente é crítico das vacinas, do uso de máscaras e do distanciamento social.

Profissional de saúde com embalagens de sulfato de hidroxicloroquina, azitromicina e difosfato de cloroquina - Ueslei Marcelino - 5.jun.20/Reuters

A possibilidade de configuração de "dano ao erário referente aos valores integrais", gastos pelo governo Bolsonaro com cloroquina e outras drogas, aparece em um relatório de auditores do TCU concluído no último dia 3.

O documento integra um processo que analisa possíveis irregularidades na produção de cloroquina pelo Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército. Entre as suspeitas investigadas estão superfaturamento, explosão de quantidades produzidas e responsabilidade direta de Bolsonaro na produção.

O mesmo relatório apontou "indícios robustos" de fraude em licitações por parte da empresa que forneceu ao Exército o insumo necessário para a fabricação da cloroquina, como a Folha mostrou no último dia 17.

Para atender a um desejo de Bolsonaro, o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, viabilizou a fabricação de 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina em 2020. A última produção pelo laboratório do Exército havia sido em 2017: um total de 265 mil comprimidos, segundo o TCU.

"Eventual reconhecimento pela nulidade da nota informativa 17/2020 do Ministério da Saúde poderá resultar, em tese, na irregular aquisição dos insumos para a finalidade de tratamento da doença pandêmica, ocasionando dano ao erário referente aos valores integrais utilizados para tal aquisição", cita o documento da área técnica.

A nota informativa citada, publicada pela gestão do general da ativa Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, orientava explicitamente o uso de cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina em pacientes com Covid.

O relatório dos auditores do TCU não avança no valor de um possível dano aos cofres públicos. A CPI da Covid no Senado, em seu relatório aprovado em outubro do ano passado, fez um cálculo sobre autorizações de gastos de dinheiro público com o kit Covid.

Segundo o relatório da CPI, os empenhos —autorizações de gastos— relacionados à aquisição de cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina em 2020 somaram R$ 41 milhões. Em 2019, antes da pandemia, foram R$ 2,4 milhões.

Com cloroquina e hidroxicloroquina, o valor empenhado em 2020 foi de R$ 30,6 milhões, de acordo com a CPI. O gasto é atribuído ao Fundo Nacional de Saúde.

Se confirmado o dano aos cofres públicos em relação a valores integrais, "não remanesceria a questão da possibilidade de compra em excesso do fármaco, já que toda a compra seria irregular", afirmaram os técnicos do TCU.

Eles sugeriram suspender a apuração sobre irregularidades na produção de cloroquina até que exista uma definição sobre a ilegalidade de se ofertar um medicamento "off label" pelo SUS (Sistema Único de Saúde) sem autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Esse é o caso do kit Covid: as drogas foram usadas para combater a doença, que não está prevista na bula dos medicamentos. A aquisição e a oferta se deram via SUS, e não havia autorização da Anvisa para isso, como constatou uma segunda auditoria do TCU.

O relatório apontou ilegalidade no uso de recursos do SUS para o fornecimento de cloroquina a pacientes com Covid. O documento integra um processo que apura irregularidades na gestão de recursos públicos por Pazuello para o fornecimento de cloroquina e hidroxicloroquina a pessoas com a doença.

A possibilidade de dano aos cofres públicos também foi citada nesse segundo processo.

Os dois processos seguem sem conclusão.

"Não comprovada a boa e regular aplicação do recurso público, inclusive sob aspecto da eficiência, o tribunal certamente agirá com a adoção das medidas que se mostrem necessárias, inclusive com responsabilização daqueles que eventualmente tiverem causado dano ao erário", cita um relatório do tribunal.

O avanço de investigações sobre ilegalidade na destinação de cloroquina e sobre um consequente dano aos cofres públicos pode explicar a resistência da gestão do atual ministro, Marcelo Queiroga, em validar o veto ao kit Covid no tratamento da doença, para além do temor de contrariar o discurso de Bolsonaro.

Em dezembro, a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde) aprovou documento que rejeita o uso, no SUS, do kit em pacientes com Covid. No mês seguinte, o ministério barrou a publicação das diretrizes aprovadas pela Conitec.

O então secretário de Ciência e Tecnologia da pasta, Hélio Angotti Neto, foi o responsável por barrar as diretrizes. Ele não aprovou capítulos sobre tratamento hospitalar e ambulatorial de pacientes com Covid.

Os capítulos não recomendavam o uso de cloroquina nesses pacientes, diante das evidências de ineficácia.

Angotti segue a cartilha de Bolsonaro e é defensor da droga. Recursos contra a decisão foram apresentados ao ministério. O secretário rejeitou esses recursos. Agora, a decisão final cabe a Queiroga.

A reportagem questionou o Ministério da Saúde sobre os apontamentos do TCU relacionados a danos aos cofres públicos e se essa possibilidade faz a pasta manter indefinida uma resolução sobre o kit Covid. Não houve resposta.

Auditorias do TCU já confirmaram que parte da cloroquina fabricada pelo Exército foi utilizada em pacientes com Covid hospitalizados e em estado grave.

O tribunal também confirmou que o Ministério da Saúde desviou para Covid comprimidos de cloroquina fabricados pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) para o combate à malária.

O TCU passou a investigar esse desvio após a Folha revelar, em reportagens publicadas em fevereiro e março de 2021, que a pasta usou a Fiocruz para produzir cloroquina para Covid. De 3 milhões de comprimidos fabricados para malária, 2 milhões foram desviados para Covid.

A iniciativa chegou a deixar o programa nacional de controle da malária descoberto, com risco de desabastecimento da droga, o que obrigou um aditivo em caráter urgente para produção de mais 750 mil comprimidos.

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