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Clínica de cetamina nos EUA atua no limite entre medicina e uso recreativo da droga

Locais aproveitam brechas na lei para usarem a substância, apesar de tratamento não ser aprovado

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Marisa Meltzer Dani Blum
The New York Times

A Clínica de Wellness Psicodélico Nushama foi decorada para parecer um lugar de felicidade serena. "O ambiente não é de um hospital ou clínica, mas de uma jornada", disse Jay Godfrey, ex-estilista cofundador do espaço ao lado de Richard Meloff, advogado que se converteu em empreendedor no setor da canabis.

A "jornada", neste caso, é provocada pela cetamina administrada por via intravenosa como tratamento de transtornos de saúde mental, apesar de esse tratamento ainda não ter sido aprovado pela Food and Drug Administration (FDA).

"Pensei: como se parece a bem-aventurança?", disse Godfrey. Na clínica Nushama, que ocupa todo o 21º andar de um edifício no centro de Manhattan, ela ganhou a aparência de 3.000 flores de seda em cores pastéis penduradas do teto e uma TV de tela plana na sala de espera que exibe um NFT (token não fungível) de "paisagem de maravilha", com nenúfares e guirlandas de folhas que, quando se olha mais de perto, percebe-se que são minúsculas ninfas. E o papel de parede combina com a paisagem.

Mulher deitada em uma maca com os olhos vendados durante tratamento
Cassandra Cooksey, 39, fez seis sessões do tratamento com cetamina na clínica Nushama em novembro passado - Victor Llorente/NYT

Godfrey fechou sua firma de moda e fundou a Nushama em 2020. Disse que ficara desencantado com o mundo da moda e que vinha usando substâncias psicodélicas para sua própria saúde mental havia muitos anos, depois de se sentir inspirado pelo best-seller "How to Change Your Mind" ("Como Mudar sua Mente"), de Michael Pollan. O momento de iluminação —que Godfrey descreveu como "uma experiência de coração se abrindo"— ocorreu no início da pandemia, quando ele se deu conta: "Posso levar esses remédios às pessoas".

Pode ser uma vocação, mas a virada de rumo profissional que ele descreveu, passando da moda para o "wellness" (bem-estar), aconteceu num momento em que havia menos necessidade das roupas que ele criava, enquanto o interesse por psicodélicos como tratamentos alternativos de saúde mental era crescente.

Investidores estão apostando em várias startups psicodélicas, incluindo serviços de delivery e opções de turismo de luxo. A clínica Nushama é apenas um exemplo de algo que muitos veem como sendo a nova fronteira da saúde, que está conseguindo operar com fiscalização limitada graças a brechas legais e uma colcha de retalhos de pesquisas convincentes.

A FDA não autoriza o uso de cetamina para tratamentos de saúde mental, mas permite que a droga seja usada como sedativo, de modo que é possível obter uma receita médica dela em Nova York. A agência autorizou uma versão de cetamina conhecida como escetamina, administrada na forma de spray nasal, a ser usada para saúde mental, mas apenas para casos de depressão resistente a tratamentos –e, embora a escetamina contenha um componente molecular da cetamina, a FDA diz que as duas drogas não são iguais.

Em outras palavras, o tratamento com cetamina oferecido na clínica Nushama é um uso não prescrito da droga, e representantes da FDA, da Comissão Federal de Comércio e da Drug Enforcement Administration (agência que implementa a legislação sobre drogas nos EUA) disseram que não regulamentam o uso de drogas para fins não prescritos por médicos —​logo, que não poderiam comentar sobre clínicas como a Nushama.

"Não existe nada de suspeito" no uso não prescrito de drogas, de maneira geral, disse Mason Marks, membro sênior da Escola de Direito de Harvard e especializado na regulamentação de psicodélicos. Mas, para ele, os provedores da droga precisam tomar cuidado para não exagerar nas promessas que fazem sobre os seus benefícios, especialmente quando as evidências de sua eficácia são limitadas.

Decoração da clínica com várias ninfas rosas presas a um fio
Detalhe da decoração da clínica Nushama, em Nova York - Victor Llorent/NYT

Segundo Dan Iosifescu, psiquiatra na N.Y.U. Langone, a cetamina também tem o potencial de causar dependência, fato que intensifica o risco de seu uso, mesmo em ambientes terapêuticos.

Muitos pesquisadores e profissionais de saúde mental consideram a cetamina eficaz para tratar a depressão quando outras drogas não surtiram efeito. Mas o site da Nushama diz que a clínica emprega a droga para tratar transtornos alimentares, transtorno obsessivo compulsivo, dependência química e dor crônica, condições para as quais há muito menos evidências de sua eficácia.

"Acho que o conceito de ‘spa para o cérebro’ trivializa tanto a doença quanto o tratamento. A cetamina é um tratamento médico que deve ser usado para tratar doenças significativas", como depressão grave ou ideações suicidas, disse Joshua Berman, diretor médico de psiquiatria interventiva na Universidade Columbia. "Ela não foi desenvolvida para oferecer experiências agradáveis, relaxantes ou novas para pessoas entediadas ou pessoas preocupadas, mas sadias."

O que mais preocupa os especialistas talvez seja o fato de que cabe aos centros individuais determinar se e como os pacientes serão atendidos por profissionais de saúde mental.

"Há muita utilização não prescrita da cetamina. É altamente preocupante porque, na maioria das vezes, ela não é acompanhada por psicoterapia alguma", disse Natalie Ginsberg, representante da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps), entidade de pesquisas e advocacia. Para ela, é crucial que os centros que empregam cetamina incorporem a terapia ao longo de todo o processo dos pacientes.

O check-in na clínica

Depois de marcar consulta na Nushama, os pacientes passam por uma avaliação psicológica virtual com Steven Radowitz, diretor médico do centro (Meloff disse que a Nushama evita usar o termo "pacientes" internamente, optando por "clientes" ou "membros"). A clínica rejeita estimados 10% dos potenciais pacientes se eles carecem de "uma boa base ou rede de apoio", têm histórico de abuso de substâncias, têm hipertensão ou não foram tratados previamente por uma condição psiquiátrica.

Já se uma pessoa chega com um diagnóstico de dor concomitante, a primeira consulta é com a Elena Ocher, executiva médica e chefe clínica, que obteve seu diploma em medicina na Rússia da Universidade Médica Estatal Pavlov São Petersburgo e se formou em neurocirurgia na Academia Médica Militar S.M. Kirov, também em São Petersburgo. Ocher dirige clínicas de tratamento de dor no Upper East Side e no Brooklyn. Godfrey a conheceu por intermédio de um cirurgião plástico seu amigo.

Uma semana antes de uma infusão de cetamina, os pacientes vão à clínica para um exame médico presencial que inclui eletrocardiograma, exame de pressão arterial e de saturação de oxigênio. Também podem ser atendidos pela enfermeira psiquiátrica especializada Devorah Kamman, que entrou para a equipe há três semanas.

James Gangemi, especialista de integração da clínica Nushama, conversa com cliente na recepção
James Gangemi, um especialista de integração da clínica Nushama, chama o tratamento de 'um dia de spa para o seu cérebro' - Victor Llorente/NYT

Mas a Nushama não tem a obrigação legal de oferecer atendimento em saúde mental aos pacientes, e um representante dela disse originalmente que é possível passar por todo o processo da clínica sem ser atendido por um profissional de saúde mental. De lá para cá, a clínica modificou essa política.

Kamman, a única profissional de saúde mental que integra a equipe, agora vai avaliar qualquer paciente que não tenha seu médico próprio, disse a clínica. Mas não estará presente quando os pacientes receberem as infusões.

Não é exigido que os pacientes estejam fazendo terapia. "Não posso obrigar as pessoas a começar a buscar atendimento médico ou de um terapeuta", disse Radowitz.

Outras clínicas são mais exigentes. "Todos os pacientes de nossa clínica precisam ter um psiquiatra externo com quem se consultam e precisam ser encaminhados por ele", disse Paul Kim, diretor de uma clínica na Johns Hopkins Medicine que oferece tratamento com escetamina.

No Soundmind Center, centro de cura psicodélica em Filadélfia que emprega cetamina, um profissional de saúde mental diplomado trabalha com cada paciente ao longo de todo seu atendimento, disse a fundadora do centro, Hannah McLane. "Para realmente tratar o problema subjacente do paciente é preciso conversar com ele. É preciso haver um profissional que ministre a terapia."

A clínica Nushama também tem "especialistas em integração" que se reúnem com os pacientes para discutir as intenções deles antes de cada sessão de infusão, vão à sala de tempos em tempos para acompanhar o que está acontecendo e retornam ao final. Mas esses coaches não são profissionais de saúde licenciados; segundo Radowitz, "são mais como babás".

A 'jornada'

Cada uma das 18 salas de atendimento da clínica tem o nome de um pioneiro da medicina psicodélica, como Ram Dass. O paciente recebe uma máscara para os olhos e fones de ouvido para ouvir meditações faladas e música instrumental do instrumentista new age alemão Deuter, que funde elementos musicais orientais e ocidentais.

Cada sala tem uma poltrona de couro de gravidade zero com um grande botão vermelho no descanso de braço com o qual o paciente pode chamar a enfermeira, que em caso de emergência pode suspender a infusão. A cetamina também pode elevar a pressão e a frequência cardíaca das pessoas, explicou Iosifescu, da N.Y.U., e algumas pessoas sentem náusea ou desconforto durante as infusões.

A substância também tem o potencial de provocar psicose. Para pessoas com transtornos alimentares, uma condição que a Nushama diz que trata, isso é especialmente arriscado, porque pelo fato de terem nutrição pobre elas têm chances mais altas de sofrer problemas cardíacos, disse o psiquiatra.

Sala de terapia em grupo da clínica Nushama com almofadas para descanso
Sala de terapia em grupo da clínica Nushama - Victor Llorente/NYT

Uma vez concluído o tratamento, um especialista em integração como o ex-profissional de marketing James Gangemi, 32, entra em ação. "Depois da sessão, você fica se perguntando: o que faço agora? Como vou enfrentar o trânsito ou meus colegas de trabalho?", contou Gangemi, que chegou à profissão graças a seu próprio uso de psicodélicos. Ele conversa com cada paciente sobre como foi sua experiência. Às vezes, faz exercícios respiratórios com eles. Um médico verifica os sinais vitais dos pacientes, monitorando sua frequência cardíaca e pressão sanguínea.

Os pacientes são encorajados a passar mais algum tempo na clínica, lendo ou escrevendo em um diário sobre a experiência. Podem pedir algo para comer ou beber de um cardápio que inclui chá de hortelã, frutas frescas e barrinhas de granola. Podem chamar uma pessoa para acompanhá-las até suas casas. A maioria permanece por cerca de uma hora, disse Radowitz. Mas as pessoas são autorizadas a sair após uma avaliação médica rápida e um papo de 15 a 20 minutos com o coach de integração.

Natalie Ginsberg, da Maps, acha preocupante o fato de a janela de monitoramento da clínica ser tão breve.

"Em qualquer forma de terapia psicodélica é realmente importante que haja tempo depois para o corpo e a mente processarem o que aconteceu", disse Ginsberg. As clínicas que usam escetamina geralmente exigem que um médico supervisione os pacientes por duas horas após a sessão, como mandam os protocolos da FDA.

Radowitz disse que não vê "diferença alguma" entre escetamina e cetamina, contrariando a visão da FDA. Mesmo assim, ele não acha necessário um acompanhamento por duas horas. Ele reconhece que as práticas da Nushama diferem dos protocolos da FDA para a administração de escetamina, mas não está preocupado com potenciais riscos ou responsabilidade legal. "Isso não me diz respeito", ele disse. "Não tenho problema algum em usar esse medicamento."

O que vem a seguir?

Para alguns pacientes, os benefícios potenciais da cetamina pesam mais que os riscos, o status legal e o custo da droga. A profissional de relações públicas Maria Kennedy, 30, passou pela primeira de suas seis "jornadas" na clínica Nushama em outubro de 2021. Havia tentado terapia falada e inibidores seletivos de recaptação da serotonina para tratar sua ansiedade e depressão, contou, mas durante a pandemia sentiu-se saindo de controle, isolada e ansiosa em seu pequeno apartamento. Seu terapeuta, que conhecia Radowitz, a encaminhou à clínica Nushama.

Kennedy contou que durante as primeiras sessões ela se sentiu flutuando no espaço, aninhada embaixo da máscara de olhos e boiando fora de seu corpo. Em outras sessões a cetamina provocou visões precisas, específicas —em uma delas, ela viu sua mãe embrulhando presentes antes de uma festa de aniversário.

Quando a agulha intravenosa era retirada, ela se sentia mais ou menos de volta ao normal. Ela permanecia por algum tempo na clínica, demorando para sair da poltrona aconchegante. "A única comparação que posso fazer é com despertar depois de um sono maravilhoso", ela disse. Depois de sair da clínica ela ia a um café com seu cachorro e lia alguma coisa enquanto tomava um café ou uma cerveja.

O interesse pelas clínicas de cetamina vem crescendo em todo o país. Desde que foi aberto, em agosto de 2021, o centro SoundMind vem recebendo cerca de cem pessoas novas por mês, em média. A Boise Ketamine Clinic, no Idaho, está com todos os horários para tratamentos psicoterápicos assistidos por cetamina tomados até o final de abril. Em San Diego, a clínica South Coast TMS and Ketamine teve uma lista de espera de 40 pessoas que aguardavam por meses, até que a clínica elevou seus preços para US$ 1.500 por sessão.

Dustin Robinson, fundador do fundo de capitais de investimento Iter Investments, que enfoca o espaço dos psicodélicos, estimou que uma clínica de cetamina padrão com cinco salas, por exemplo, rende entre US$ 75 mil e US$ 100 mil ao mês, valor que pode dobrar se todos os horários estiverem tomados.

Segundo ele, a margem de lucro pode passar de 30%, algo que, segundo relatórios da indústria é muito superior à da maioria dos serviços de saúde. "Não há um quadro grande de profissionais e a medicina oferecida custa muito pouco —um valor quase desprezível—, de modo que o custo maior é com os profissionais", ele disse.

Vista geral da clínica, mostrando corredor e sala de tratamento
A clínica possui 18 salas de tratamento, incluindo uma para casais e outra para terapia em grupo - Victor Llorente/NYT

Robinson conhece Godfrey, mas não é investidor na Nushama, que cobra US$ 4.500 por sete sessões. Os seguros médicos raramente cobrem cetamina para uso em saúde mental, mas podem cobrir se também houver um diagnóstico de dor. A Nushama não faz sessões individuais. "É difícil entrar em forma indo para a academia apenas uma vez", explicou Meloff.

A clínica também promove "jornadas em grupo", para até oito pessoas juntas numa sala grande, por mais ou menos a metade do preço das sessões individuais. Os fundadores da clínica têm grandes planos para eventos que divulguem seu trabalho. Eles esperam um dia promover aulas de ioga e terapia respiratória no terraço. Também dizem que o plano é ministrar MDMA (ecstasy) ou psilobicina quando (e se) a FDA liberar esses psicodélicos.

Mas enquanto as agências federais não aprovarem o uso de qualquer psicodélico para tratar problemas de saúde mental, clínicas como a Nushama vão continuar a redigir suas próprias regras, sem regulamentação.

"Sei que esse movimento será impulsionado pela busca do lucro, mas estou fazendo pressão para as pessoas reduzirem suas margens de lucro um pouquinho e contratarem mais terapeutas", disse McLane, do centro SoundMind. "Não é justo para os pacientes que não haja um terapeuta ou facilitador presente em cada sala ao longo de cada sessão."

Tradução de Clara Allain

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