Drogas psicodélicas voltam como promessa de revolução na psiquiatria

Novo livro do jornalista Michael Pollan contribui para reabrir portas da academia a alucinógenos

[RESUMO] Novo livro do jornalista Michael Pollan contribui para reabrir as portas da academia às drogas psicodélicas como vanguarda de uma revolução na psiquiatria. Proibidas nos anos 1970 por incendiar a contracultura, elas voltam com a promessa de arrefecer o ego e rebaixar defesas que aprisionam o espírito no estresse pós-traumático, na dependência química e na depressão.

 

Quando o renascimento das drogas psicodélicas se firmar no panteão da saúde mental, o 10 de outubro de 2018 se tornará uma data tão importante, talvez, quanto o Dia da Bicicleta (19 de abril de 1943) e o Experimento da Sexta-Feira Santa (20 de abril de 1962).

O advento dessa nova era teve lugar num templo da ciência biomédica contemporânea, o Instituto Broad, fundado em Cambridge (EUA) pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e pela Universidade Harvard. O auditório principal do Broad lotou para o debate “Medicina Psicodélica: Da Tradição à Ciência”. Mais de mil pessoas que não conseguiram um lugar assistiram a tudo pela internet.

No palco, o semicírculo com seis debatedores abrigava os dois maiores responsáveis por reacender a pira psicodélica após quase meio século de obscuridade: o psicólogo Rick Doblin, 64, e o jornalista Michael Pollan, 63, de quem a editora Intrínseca lança nesta semana a tradução do best-seller “Como Mudar Sua Mente – O que a Nova Ciência das Substâncias Psicodélicas Pode nos Ensinar sobre Consciência, Morte, Vícios, Depressão e Dependência”.

Seu trabalho à frente da Maps deu frutos. A ONG coletou US$ 27 milhões em doações e deve começar a recrutar no próximo ano de 200 a 300 participantes, entre os 20 mil na lista de espera, para um teste clínico de fase 3 com psicoterapia assistida por MDMA para tratar estresse pós-traumático.

Na fase 2, o MDMA permitiu progressos significativos na condição de uma centena de pacientes, entre eles veteranos de guerra, policiais e bombeiros.

A luta de Doblin começara quatro décadas antes. O adolescente judeu vivia atormentado com as histórias tenebrosas do Holocausto e com a perspectiva de uma guerra nuclear, após a crise dos mísseis em Cuba (1962). Aí seu próprio país decidiu pedir que ele matasse e morresse na Guerra do Vietnã, mas o jovem de 18 anos se recusou.

Seguindo os conselhos de Timothy Leary, mergulhou nas drogas, mas com escasso sossego. “Tinha uma enorme dificuldade em minhas viagens [psicodélicas] para deixar as coisas rolarem”, conta. Procurou o orientador da escola, que lhe recomendou o livro (eram outros tempos) “Domínios do Inconsciente Humano – Observações da Pesquisa com LSD”, de Stanislav Grof.

“Foi o que juntou todas as peças para mim, ciência, psicologia, espiritualidade, cura de pessoas.” No ano de 1972, decidiu que iria dedicar a vida aos psicodélicos, mas só dez anos depois conseguiu estabilizar-se e retomar os estudos, partindo para um doutorado em políticas de saúde na Escola Kennedy de Governo em Harvard.

Fundou a Maps em 1986, depois de tomar contato com uma nova droga, MDMA. Antes que o composto fosse proibido pela DEA (agência americana de combate a drogas), em 1984, quando o ecstasy já se tornara popular nas raves, umas 500 mil doses foram usadas em psicoterapia.

A escolha do MDMA como carro-chefe da revolução psicodélica tem várias vantagens. Sintético, o fármaco não envolve as dificuldades de padronização e dosagem presentes no caso de plantas (ayahuasca) e fungos (psilocibina), por exemplo.

Além disso, atua sobre receptores cerebrais diversos dos ativados por psicodélicos clássicos (mescalina, LSD, psilocibina) e não desencadeia experiências místicas —muitos nem mesmo consideram que seja uma droga psicodélica. 

Mas provoca um salto de empatia que facilita o trabalho terapêutico, como descrevi em reportagem na Ilustríssima em junho de 2017.

“Com o transtorno de estresse pós-traumático”, explica Doblin, “a pessoa lida com coisas que aconteceram, coisas de sua biografia que tem medo de lembrar, precisa elaborar, o que exige um aspecto mais pé-no-chão para o processo, menos místico e mais terapêutico.”

Não chega a ser uma discordância de Pollan (que de resto rejeita classificar o MDMA como droga psicodélica). No atacado, contudo, o novo e o velho profeta convergem em sua pregação por uma igreja sem fé, fé que se torna supérflua quando todos os praticantes têm acesso franqueado à transcendência. Ópio do povo, mas sem religião. Aqui e agora. 

 

Experimento da Sexta-Feira Santa (20/4/1962)
Walter Pahnke (1931-1971), médico e pastor protestante, fazia doutorado em Harvard sobre religião e sociedade. Seu orientador era Timothy Leary (1920-1996), que depois se tornaria famoso guru psicodélico. Em 1962, eles estavam interessados em estudar as experiências místicas desencadeadas pela psilocibina, alucinógeno presente em cogumelos do gênero Psilocybe.

Pahnke reuniu 20 seminaristas na capela Marsh da Universidade de Boston e deu a metade deles 30 miligramas de psilocibina cada um, enquanto a outra metade ingeria ácido nicotínico, um placebo ativo (pode causar vermelhidão na pele, calor e coceira). No andar de cima, o reverendo Howard Thurman dava seu sermão da Sexta-Feira Santa, que os participantes do experimento podiam ouvir.

O grupo do placebo permaneceu lendo a Bíblia horas a fio enquanto os outros se contorciam pelo chão e diziam: “Deus está por toda parte”; “Ó glória”. Pahnke aplicou depois questionários para aquilatar a experiência mística dos participantes e publicou um artigo que terminaria relatado numa reportagem da revista Time sob o título “Misticismo no laboratório”.

Dia da Bicicleta  (19/4/1943)
O químico suíço Albert Hofmann (1906-2008) sintetizou o LSD em 1938 nos Laboratórios Sandoz de Basileia, a partir de um fungo que coloniza pães de centeio. Em 1943, ele ingeriu por acidente um pouco do composto e sentiu-se estranho.

Três dias depois, embarcou na primeira viagem lisérgica intencional, com apenas ¼ de miligrama de LSD, e começou a fazer anotações: “leve zonzeira, inquietação, dificuldade de concentração, distúrbios visuais, vontade acentuada de rir”. Incapaz de seguir escrevendo, foi para casa de bicicleta, embora tudo oscilasse em seu campo de visão.

Já em sua sala, a mente decolou: “Meu ‘ego’ estava suspenso em algum lugar do espaço e vi meu corpo jazendo morto no sofá. Eu observava e registrava claramente que meu ‘alter ego’ se movimentava pelo recinto, gemendo”.


Marcelo Leite é colunista da Folha, doutor em ciências sociais pela Unicamp e autor dos livros “Promessas do Genoma” e “Ciência – Use com Cuidado”.

Ilustração de Marcelo Cipis, artista plástico.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.