Indústria dos opioides mira países como o Brasil, diz pesquisadora

Para médica que pesquisa crise de overdoses, depois dos EUA, países em desenvolvimento são mercados atrativos

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São Paulo

A indústria de opioides sintéticos tem se esforçado para aumentar o mercado desses medicamentos em países em desenvolvimento, como o Brasil, afirma a médica Adriane Fugh-Berman, professora do departamento de farmacologia e fisiologia da Universidade Georgetown, em Washington, capital americana.

Para isso, as companhias têm usado estratégias semelhantes às que levaram os Estados Unidos a enfrentar a maior epidemia de usuários de drogas da sua história, avalia ela, que pesquisa conflitos de interesse entre a indústria de medicamentos e a classe médica.

Pílulas de remédio feito a base de opioide em farmácia em Portsmouth, no estado americano de Ohio
Pílulas de remédio feito a base de opioide em farmácia em Portsmouth, no estado americano de Ohio - Bryan Woolston - 21.jun.17/Reuters

Segundo a médica, entre as estratégias está a ênfase na necessidade de opioides nos cuidados do fim da vida, uma necessidade real e muitas vezes negligenciada em países em desenvolvimento. Além disso, há o discurso de tornar os EUA um ponto atípico.

"O discurso é que, sim, os EUA têm uma epidemia de overdose de opioides, mas isso não vai acontecer aqui [no país em questão]", diz ela, em entrevista à Folha.

Fugh-Berman cita uma série de táticas da indústria que precederam a epidemia de opioides nos EUA e que podem ser usadas em outros países, como declarar que há uma epidemia de dor não tratada, posicionar os opioides como os melhores medicamentos para dor crônica, assegurar aos médicos que a triagem e o monitoramento evitarão a dependência e convencê-los a manter os pacientes em uso de opioides, mesmo quando eles são ineficazes.

A promoção agressiva de analgésicos altamente viciantes desde meados da década de 1990 é considerada por muitos como o gatilho para a crise de opioides, que levou a mais de 500 mil mortes por overdose nos últimos 20 anos nos Estados Unidos.

À medida que se viciavam nesses opiáceos prescritos, muitos pacientes mais tarde começaram a usar poderosos derivados ilícitos, como heroína ou fentanil, a causa de muitas overdoses.

No ano passado, a empresa Johnson & Johnson e três distribuidores de medicamentos dos Estados Unidos acusados de alimentar a epidemia de opioides declararam-se dispostos a pagar US$ 26 bilhões para resolver milhares de processos. No mês passado, a rede de farmácias CVS também fechou um acordo de US$ 484 milhões para encerrar ações sobre opioides.

Outros grandes laboratórios, como Purdue —fabricante do medicamento OxyContin, que muitos consideram um dos primeiros responsáveis pela epidemia— Teva, Allergan e Endo, também são alvos de ações judiciais.

Para evitar que o Brasil enfrente uma situação parecida, Fugh-Berman recomenda que o país estude e discuta o que aconteceu nos EUA. "Lutem contra qualquer percepção de que há uma epidemia de dor e que os riscos dos opioides são exagerados. Recuse qualquer educação financiada pelas farmacêuticas. Os médicos precisam liderar a luta contra isso."

Segundo ela, os conselhos médicos precisam advertir os profissionais sobre os riscos. "Novas prescrições de opioides devem ser limitadas a três dias. Ninguém deve prescrever mais de 90 mme (miligrama equivalente de morfina) de opioides por dia, exceto para pacientes dependentes, que devem ser desmamados lentamente."​

De acordo com os médicos brasileiros, o país está numa situação em que é possível prevenir um quadro como o atual dos EUA. Mas, para isso, precisa investir em informação voltadas à população leiga e aos médicos sobre as formas corretas de manejar a dor.

O Brasil, ao mesmo tempo em que observa os números do consumo de remédios opioides subirem, também enfrenta outra realidade oposta: o subtratamento da dor. Isso faz com que pacientes que precisam dessas medicações mais fortes muitas vezes demorem a ter acesso a elas por receio do vício tanto por parte do médico quanto do paciente.

Segundo a International Narcotics Control Board, o consumo de morfina e seus derivados no Brasil é muito baixo quando comparado a países tidos como modelos internacionais no cuidado paliativo, como Inglaterra e Alemanha. Seriam 3 mg per capita no Brasil, contra cerca de 20 mg nesses países.

Para a anestesiologista Silvia Tahamtani, especialista em dor e em cuidados paliativos do Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo), falta conhecimento médico sobre o controle da dor. "São duas coisas que a gente tem que lidar: a opiofobia, o medo de prescrever opioide e o paciente ficar viciado, e a opioignorância, a pessoa que não sabe fazer uso adequado daquela medicação."

Existem questionários que estratificam o risco de dependência sempre que um paciente tiver indicação de opiáceos. Entre as perguntas estão se ele tem familiares com algum tipo de dependência (álcool, cigarro e outras drogas) ou história de abuso na pré adolescência. Ambas são situações que predispõem o paciente ao vício.

Para a médica Angela Sousa, também anestesiologista e especialista em dor do Icesp, a falta desses cuidados na pré-administração dos opioides é o principal fator que leva à dependência. "Se o paciente tem risco de vício, preciso olhá-lo ainda mais de perto. Ele precisa saber que vamos ficar em cima e que isso é para a proteção dele."


Entenda o que são os opioides e os riscos

  • Medicamentos derivados da papoula —planta que também é a base para a produção do ópio. Eles estimulam receptores no cérebro e geram um poderoso alívio da dor.
  • Além disso, reduzem a ansiedade e a depressão que costumam acompanhar episódios de dor intensa.
  • Produzem também uma sensação de euforia, são altamente viciantes e podem levar a mortes por overdoses, além de outros danos. Por isso, há o perigo de que sejam usados de forma irregular.
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