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O smartphone pode ajudar a prever suicídios?

Pesquisadores criam aplicativo que coleta dados sobre estado de espírito e interações sociais dos pacientes

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Ellen Barry
Cambridge (EUA) | The New York Times

Em março, Katelin Cruz deixou sua última internação psiquiátrica com uma já conhecida mistura de sentimentos. Estava aliviada por sair da enfermaria, na qual os funcionários escondiam os cadarços de seus sapatos e às vezes a seguiam até o chuveiro para garantir que ela não tentasse se ferir.

Mas ela contou que sua vida lá fora estava instável como sempre, com uma pilha de contas não pagas e sem um lar permanente. Foi fácil voltar para os pensamentos suicidas. Para o paciente frágil, as semanas depois da alta de uma instituição psiquiátrica são um período notoriamente difícil, com uma taxa de suicídio 15 vezes superior à dos Estados Unidos, de acordo com um estudo.

Contudo, dessa vez, Cruz, de 29 anos, deixou o hospital como parte de um projeto de pesquisa que tenta usar avanços na inteligência artificial para fazer algo que os psiquiatras procuram resolver há séculos: prever quem é suscetível à tentativa de suicídio e quando essa pessoa vai fazê-lo, para que uma intervenção seja possível.

Duas mãos seguram um smartphone
Katelin Cruz mostra a pergunta enviada ao seu smartphone pelos pesquisadores da Universidade de Harvard - Kayana Szymczak/NYT

No pulso, ela usava um Fitbit programado para acompanhar seu sono e sua atividade física. Em seu smartphone, um aplicativo coletava dados sobre seu estado de espírito, seus movimentos e suas interações sociais. Cada dispositivo fornecia um fluxo de informações a uma equipe de pesquisadores da Universidade Harvard.

No campo da saúde mental, poucas novas áreas geram tanta empolgação quanto o aprendizado de máquina, que usa algoritmos de computador para prever melhor o comportamento humano. Ao mesmo tempo, há um grande interesse em biossensores que podem acompanhar o humor de uma pessoa em tempo real, levando em conta escolhas musicais, postagens nas redes sociais, expressão facial e expressão vocal.

Matthew K. Nock, psicólogo de Harvard que é um dos maiores pesquisadores do suicídio no país, espera unir essas tecnologias em uma espécie de sistema de alerta precoce que poderia ser usado quando um paciente em risco recebe alta do hospital. Ele deu um exemplo de como poderia funcionar: o sensor relata que um paciente tem o sono perturbado, relata o mau humor em questionários e o GPS mostra que ele não está saindo de casa. E um acelerômetro no telefone mostra que a pessoa está se movimentando muito, o que sugere agitação. O algoritmo sinaliza o paciente. Um alarme soa em um painel. E, na hora certa, um médico oferece ajuda com um telefonema ou uma mensagem.

O psicólogo Matthew K. Nock posa para foto ao lado de um muro
O psicólogo Matthew K. Nock espera unir as tecnologias em uma espécie de sistema de alerta precoce que poderia ser usado quando um paciente em risco recebe alta do hospital - Kayana Szymczak/NYT

Há muitas razões para duvidar que um algoritmo possa chegar a esse nível de precisão. O suicídio é um evento tão raro, mesmo entre aqueles que correm maior risco, que qualquer esforço de previsão certamente resultará em falsos positivos, forçando a intervenção em pessoas que podem não precisar dela. Os falsos negativos poderiam colocar a responsabilidade legal nos médicos.

Os algoritmos precisam de dados granulares de longo prazo de um grande número de pessoas, e é quase impossível observar um grande número de suicidas. Por fim, os dados necessários para esse tipo de monitoramento levantam a questão de invasão de privacidade de integrantes mais vulneráveis da sociedade.

Nock está ciente de todos esses argumentos, mas persiste, em parte por frustração. "Com todo o respeito àqueles que fazem esse trabalho há décadas, há um século, não aprendemos muito a identificar pessoas em risco e a intervir. A taxa de suicídio agora é a mesma de cem anos atrás. Portanto, sinceramente, não estamos melhorando."

Os dados

Em uma tarde de agosto em Harvard, um cientista de dados chamado Adam Bear estava sentado diante de um monitor no laboratório de Nock, olhando para os gráficos em zigue-zague dos níveis de estresse de um sujeito ao longo de uma semana.

Quando os estados de ânimo são mapeados como dados, surgem padrões, e procurá-los é o trabalho de Bear. Ele passou alguns meses em meados deste ano analisando dias e horas de 571 participantes que, depois de procurar atendimento médico em decorrência de pensamentos suicidas, concordaram em ser rastreados durante seis meses. Enquanto estavam sendo rastreados, dois se suicidaram e entre 50 e 100 fizeram tentativas.

A equipe está mais interessada nos dias anteriores às tentativas de suicídio. Já surgiram sinais: embora os impulsos suicidas muitas vezes não se alterem no período anterior a uma tentativa, a capacidade de resistir a esses impulsos parece diminuir. A privação do sono parece contribuir para isso.

Nock procura maneiras de estudar esses pacientes desde 1994, quando teve uma experiência que o chocou. Durante um estágio de graduação no Reino Unido, foi designado para uma unidade fechada, destinada a pacientes violentos e com tendência à autoagressão. Lá, viu coisas inéditas para ele: pacientes com cortes nos braços. Um deles arrancou o próprio globo ocular. Um jovem com quem fez amizade, que parecia estar melhorando, foi encontrado mais tarde no rio Tâmisa.

Ele teve outro choque quando começou a fazer perguntas sobre o tratamento desses pacientes aos médicos e percebeu que estes sabiam muito pouco. Lembra-se de que um deles respondeu: "Receitamos alguns remédios, falamos com eles e esperamos que melhorem".

Nock concluiu que uma das razões foi que nunca foi possível estudar um grande número de pessoas com ideias suicidas da mesma forma que somos capazes de observar pacientes com doenças cardíacas ou tuberculose: "A psicologia não avançou tanto quanto outras ciências porque temos feito isso de maneira errada. Não encontramos algum comportamento importante e o observamos. Mas, com o advento de aplicativos baseados no smartphone e nos sensores de vestir, temos dados de muitos canais diferentes e, cada vez mais, a capacidade de analisá-los e observar as pessoas enquanto levam a vida".

Dizer a verdade a um computador

Foi por volta das 21h, algumas semanas depois do estudo de seis meses, que a pergunta apareceu no telefone de Cruz: "Quão forte é seu desejo de se matar?" Sem pensar, ela arrastou o dedo até o fim da barra: 10. Alguns segundos depois, pediram-lhe que escolhesse entre duas declarações: "Certamente não vou me matar hoje" e "Certamente vou me matar hoje". Ela optou pela segunda.

Quinze minutos depois, seu telefone tocou. Era uma integrante da equipe de pesquisa, que ligara para o 911 e manteve Cruz na linha até a polícia chegar; em seguida, ela desmaiou. Mais tarde, quando recuperou a consciência, uma equipe médica massageava-lhe o esterno, procedimento doloroso usado para reanimar quem sofreu overdose.

Cruz tem o rosto pálido e angélico e usa uma franja de cachos escuros. Estava estudando para um curso de enfermagem quando uma série de crises mentais fez sua vida mudar de direção. Mantém o interesse nerd pela ciência, brincando que a caixa torácica desenhada em sua camiseta é "anatomicamente correta".

Mulher sentada na sombra de uma árvore deixa aparecer o rosto e o tronco
Katelin Cruz respondia às questões obedientemente seis vezes por dia, quando os aplicativos em seu telefone perguntavam sobre seus pensamentos suicidas - Kayana Szymczak/NYT

Ela logo se interessou pelo experimento, e respondia às questões obedientemente seis vezes por dia, quando os aplicativos em seu telefone perguntavam sobre seus pensamentos suicidas. As notificações eram intrusivas, mas também reconfortantes: "Parecia que eu não estava sendo ignorada. Ter alguém que sabe como me sinto tira um pouco do peso".

Na noite de sua tentativa, ela estava sozinha em um quarto de hotel em Concord, Massachusetts. Não tinha dinheiro suficiente para outra noite lá, e seus pertences estavam em sacos de lixo no chão.

Confessou que estava cansada "de sentir que não tinha ninguém e nada". Comentou que achava que a tecnologia —seu anonimato e a ausência de julgamento— facilitava o pedido de ajuda: "Acho que é mais fácil dizer a verdade a um computador".

Recentemente, quando o ensaio clínico de seis meses chegou ao fim, Cruz preencheu seu questionário final com uma pontada de tristeza. Perderia o dólar que recebia por cada resposta. E sentiria falta da sensação de que alguém a observava, mesmo que fosse alguém sem rosto, a distância, por intermédio de um dispositivo.

"Honestamente, me sinto um pouco mais segura ao saber que alguém se importa o suficiente para ler esses dados todo dia, sabe? Vou ficar meio triste quando acabar."


ONDE PROCURAR AJUDA NO BRASIL

Mapa Saúde Mental
Site reúne diversas iniciativas de atendimento: www.mapasaudemental.com.br

CVV (Centro de Valorização da Vida)
Voluntários atendem ligações gratuitas 24 horas por dia no número 188: www.cvv.org.br.

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