Descrição de chapéu The New York Times genética

Médicos conseguem tratar feto injetando enzima via cordão umbilical

Experiência pode mudar o rumo de uma série de doenças genéticas graves

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Gina Kolata
The New York Times


Pela primeira vez, os médicos conseguiram tratar um feto injetando uma enzima essencial por meio de seu cordão umbilical minúsculo, interrompendo o que do contrário seria uma moléstia hereditária fatal conhecida como doença de Pompe. O bebê, Ayla Bashir, está se desenvolvendo normalmente, rindo, "conversando" e ensaiando os primeiros passos em casa, em Ottawa, na província canadense de Ontário.

Por trás do sucesso do tratamento da pequena, publicado no New England Journal of Medicine, há um drama que envolve pesquisadores apaixonados de três hospitais e médicos que se comoveram com a luta da família. Há a esperança —e a expectativa— de que a experiência abra caminho para tratamentos de anomalias fetais que mudem o rumo de uma série de doenças genéticas graves, incluindo hemofilia e atrofia muscular espinhal, eliminando a necessidade de tratamento médico permanente.

Sobia Qureshi e Zahid Bashir com a filha Ayla, que ainda no útero recebeu tratamento contra a doença de Pompe - Jessica Deeks/NYT

O transtorno genético de que Ayla sofre pode ser fatal no primeiro ano de vida. É a quinta filha de seus pais, mas apenas a terceira a sobreviver: as outras duas, Zara e Sara, morreram do mesmo mal. Sobia Qureshi e Zahid Bashir testemunharam o enfraquecimento progressivo dos músculos dos bebês, roubando-lhes a capacidade de locomoção até que, incapazes de engolir e respirar e com os músculos cardíacos tão enrijecidos que já não conseguiam bombear, as duas morreram.

A inspiração para o tratamento que salvou a garota começou com Tippi MacKenzie, cirurgiã pediátrica da Universidade da Califórnia em San Francisco. Ao lado de sua equipe, ela já tinha tratado de fetos com talassemia, doença genética causada pela falta de hemoglobina, com transplante de células-tronco e transfusões, inserindo uma agulha no cordão umbilical para lhes garantir sangue novo.

Foi o que lhe deu a ideia. Há um grupo de enfermidades genéticas raras conhecidas como doenças do armazenamento lisossomal, nas quais a falta de uma enzima leva ao acúmulo de substâncias tóxicas nas células. Algumas, inclusive a doença de Pompe, podem ser tratadas com a injeção da substância imediatamente depois do nascimento, mas, como os danos irreversíveis podem começar antes do parto, MacKenzie pensou que talvez pudesse iniciar o processo no feto, com a infusão de enzimas através do cordão umbilical para chegar à corrente sanguínea. Fez algumas tentativas com ratos com mucopolissacaridose tipo VII, ou MPS7. "Eles reagiram muitíssimo bem", relata.

Então, em 2019, uma mulher cujo feto fora diagnosticado com um caso grave da MPS7 passou em consulta com a médica, que recebeu autorização da FDA (Administração de Alimentos e Medicamentos, agência federal reguladora norte-americana, na sigla em inglês) para fazer o procedimento intrauterino; infelizmente, porém, a aprovação demorou muito para sair, quando a doença já estava muito adiantada, e a médica optou por não o efetuar. O bebê nasceu morto.

O órgão sugeriu então que ela propusesse um teste clínico para incluir os fetos com doenças do armazenamento lisossomal e o procedimento de reposição de enzimas já aprovado. Como são transtornos muito raros, afetam apenas seis ou sete bebês nascidos a cada ano nos EUA. Assim que a médica recebeu o aval oficial, em 2020, passou a aguardar as grávidas indicadas por outros colegas; a paquistanesa Qureshi, 37, foi a primeira.

Ela e Bashir, canadense de 41, sempre quiseram ter pelo menos três filhos —e, depois de se casarem, em 2008, imaginaram que teriam a família grande com que sonhavam. Mas, quando ela engravidou, em 2010, o casal não tinha ideia do que teria pela frente: Zara, a primogênita, nasceu em 2011 com a doença de Pompe. Quando completou cinco meses de vida, Qureshi e Bashir foram encaminhados para Pranesh Chakraborty, pediatra do Children's Hospital of Eastern Ontario e especialista em doenças metabólicas genéticas.

O tratamento se resumia a injetar a enzima ausente, ou alfa-glicosidase ácida, a cada quinzena, acompanhada de imunossupressores para que o bebê não desenvolvesse anticorpos que destruíssem a substância.

No dia em que Chakraborty faria a primeira infusão, porém, os pulmões de Zara entraram em colapso, e ela passou um mês na UTI, incluindo dez dias no ventilador mecânico. Começou a terapia enzimática aos seis meses e meio, mas a doença só fez progredir. Quando completou dois anos, seus pais tomaram a difícil decisão de interromper o processo, passando para o tratamento paliativo. Ela morreu em casa cinco meses depois.

Em 2016, Qureshi engravidou de novo, e novamente os exames pré-natais revelaram que o feto sofria da doença de Pompe. Bashir e Qureshi decidiram nem iniciar a terapia com Sara, pulando direto para a prática paliativa. Sara morreu aos oito meses.

O pediatra Pranesh Chakraborty, especialista em distúrbios metabólicos hereditários - Jessica Deeks/NYT

No início de fevereiro de 2020, Chakraborty recebeu um telefonema de Qureshi, dizendo que estava grávida de novo, e que o pré-natal mostrava que esse feto também sofria da doença de Pompe. Ela e Bashir tinham decidido que, dessa vez, queriam seguir o tratamento. No mesmo dia, o médico telefonou para uma pesquisadora da Universidade Duke, Priya Kishnani, que desenvolvera uma terapia de substituição de enzimas e imunossupressão, pedindo conselhos. "O que eu queria era organizar as opções. O que havia de novo na área? O que podíamos fazer?", relembra o especialista.

Em 1991, a médica assumira como missão encontrar uma opção de tratamento para as doenças do armazenamento lisossomal. Passou a trabalhar na causa com um grupo de colegas e, dez anos depois, já estava pronta para injetar a enzima ausente nos bebês logo depois do nascimento. Entretanto, das primeiras três tentativas, dois não sobreviveram.

Mais tarde, os pesquisadores descobriram que os pequenos sofriam de uma versão severa da moléstia, ou seja, não produziam a enzima de jeito nenhum. Por isso, quando esta foi injetada neles, o sistema imunológico a interpretou como um corpo estranho, criando anticorpos para destruí-la.

E se o caminho fosse suprimir o sistema imunológico? Será que assim a enzima poderia atuar?

Kishnani abriu um estudo na Duke para bebês de todas as partes do mundo, de modo que durante cinco semanas receberiam imunossupressores e infusões enzimáticas regulares. Deu certo: depois de tratar cerca de 70 bebês, Kishnani teve a certeza de que encontrara um meio de ajudar.

As crianças continuam vivas —a mais velha tem 12 anos—, ainda que sofrendo de fraqueza muscular. Isso porque a doença de Pompe começa sua destruição quando o feto ainda se encontra no útero, e a musculatura fragilizada nesse momento não pode ser recuperada.

Quando Chakraborty ligou para Kishnani para falar da gestação mais recente de Qureshi, ela lhe contou que talvez houvesse um meio de prevenir as consequências do mal de Pompe na primeira infância, pois um novo estudo clínico estava prestes a começar. MacKenzie, em parceria com sua equipe da Duke, incluindo a professora associada Jennifer Cohen, ia tentar injetar a enzima ausente no feto antes do nascimento.

Não demorou para que Chakraborty, Kishnani, MacKenzie e Cohen começassem a organizar meios de aplicar o tratamento. Se Qureshi se inscrevesse no estudo de MacKenzie, teria de ir a San Francisco para fazer as infusões, mas a pandemia a impediu. "Foi uma decisão muito difícil. Com o coração pesado, eu disse aos médicos que não poderia ir a San Francisco", revela Qureshi.

Sua médica, Karen Fung-Kee-Fung, especialista em medicina materno-fetal e professora de obstetrícia e ginecologia do Hospital Ottawa, percebeu que a única opção seria tratar Ayla no Canadá. Assim, em seis sessões, os médicos locais injetaram a solução enzimática no cordão umbilical do feto, entre a 24ª e a 36ª semanas de gestação —e, em 22 de junho de 2021, fizeram o parto. "Um bebê meiguinho e fofo", descreveu Fung-Kee-Fung.

A princípio, Bashir e Qureshi viviam uma rotina de dúvidas: será que Ayla conseguiria levantar a cabecinha? Engatinhar, andar? Sim, ela conseguiu —e no tempo certo. "Antes eu estava otimista, mas com um pé atrás. Agora estou só otimista, mas ainda bem assustado", admite o pai.

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