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CFM ignora consenso científico sobre máscaras contra a Covid; entenda ponto a ponto

Conhecimento adquirido na pandemia mostra que a proteção é eficaz; ofício de entidade médica se baseia em estudos frágeis

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São Paulo

O ofício enviado na última segunda (13) pelo presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina), José Hiran da Silva Gallo, para o diretor-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Antonio Barra Torres, ignora o consenso científico sobre eficácia das máscaras como forma de prevenir a infecção pelo coronavírus.

Na carta, Gallo faz críticas à manutenção do uso de máscaras pela população geral como forma de proteção e diz que se trata de "ideologia". Ele diz ainda que "não há evidências de proteção e sim de agravos à saúde de tripulantes e passageiros em aeronaves".

Paulistanos circulam com máscara de proteção contra a Covid-19 na região da 25 de Março, no centro de São Paulo - Zanone Fraissat - 19.mar.22/Folhapress

Desde novembro do ano passado, a Anvisa voltou a exigir o uso de máscaras em aeroportos e aviões.

O CFM foi fundado em 1951 com a função de fiscalizar e normatizar a prática médica no Brasil. Durante a pandemia, médicos e especialistas criticaram a postura política adotada por membros do conselho, quando houve posicionamento contrário a medidas consideradas eficazes contra o coronavírus e suposta omissão em investigar a prescrição do chamado tratamento precoce (kit composto de hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina e nitazoxanida), mesmo com estudos já comprovando a ineficácia desses medicamentos contra a Covid.

Em nota enviada à reportagem, a coordenação de imprensa do CFM disse que não houve um posicionamento contra as máscaras, mas sim que o CFM "compartilhou com a Anvisa [...] levantamento feito por pesquisadores sobre estudos relacionados à eficácia do uso de máscaras em aeronaves".

"O envio teve como objetivo contribuir com a reflexão sobre o tema" e que "chama atenção o fato de as máscaras serem obrigatórias apenas nos aeroportos e aviões, enquanto não são cobradas em outros ambientes como shows e outras aglomerações".

Um dos estudos citados no ofício de Gallo foi publicado no último dia 30 de janeiro na plataforma Cochrane Library e é uma revisão de estudos randomizados (quando os grupos controle e aquele no qual se pretende fazer a avaliação de uma medida são distribuídos aleatoriamente) no formato de metanálise (ou seja, revisão dos dados já publicados, sem que sejam feitas novas pesquisas) que chega à conclusão que as máscaras são ineficazes contra Covid.

Segundo Leandro Tessler, professor de física da Unicamp, os autores do estudo têm uma série de conflitos de interesse, como terem participado ativamente de pesquisas contra as máscaras, assinado a Declaração de Great Barrington, publicada em 2020 contra o lockdown e que continha fraudes na autoria e manipulação de dados para chegar ao resultado, e ainda estariam alinhados a interesses de grupos extremistas contrários às medidas de controle da pandemia.

Veja abaixo os principais pontos do ofício do presidente do CFM contra as máscaras e como eles já foram refutados pela ciência.

CFM: "A efetividade de políticas públicas de obrigatoriedade do uso de máscaras como forma de conter a Covid-19 ou mitigar os seus efeitos é um tema ainda controverso".

Diversos estudos já comprovaram como as máscaras, principalmente as do tipo N95 ou PFF2, são eficientes para prevenir a infecção pelo Sars-CoV-2.

Dois fatores são determinantes no caso de contrair a Covid: a distância da pessoa e qual a infectividade dela —o que vai depender de qual dia após a infecção ela se encontra e se tem sintomas.

Em ambientes arejados e abertos, o risco de contrair o vírus pelo ar é reduzido, mas ele vai ser aumentado se houver uma aglomeração. Nesses casos, uma máscara bem ajustada irá reduzir a infecção e diminuir as partículas possivelmente infectantes inaláveis.

em locais fechados, diversos estudos mostram como a transmissão por Covid pode ser acelerada quando não há o uso de máscaras no local. Um exemplo da importância das medidas foi o pico de novas infecções na China no final do ano passado quando foram retiradas as restrições da chamada "Covid Zero".

Em novembro de 2022, um artigo na Nature assinado por 400 cientistas de 112 países listou os principais consensos científicos para conter a Covid.

Entre eles está a combinação de uma abordagem de "vacina mais", aliando vacinação, medidas protetoras (como uso de máscaras), tratamento e incentivos à população.

CFM: "Existem já estudos de grande relevância científica que demonstram a ineficiência de máscaras na redução da propagação do Sars-CoV-2".

Em geral, estudos sérios, publicados em periódicos científicos de relevância e com a participação de cientistas renomados, reconhecem a eficácia das máscaras como medida protetora eficaz contra a infecção do Sars-CoV-2.

A capacidade protetora das máscaras varia conforme o tipo de material utilizado e a trama. Um estudo feito pela USP avaliou a eficiência de filtragem de diferentes tipos de máscaras vendidos no Brasil e encontrou que as máscaras N95 ou PFF2 são as mais indicadas, com eficácia acima de 98%, seguidas pelas de TNT ou cirúrgicas (entre 80% e 90%) e, por fim, pelas de pano, com média de 40%. As máscaras de tricô, com tramas abertas ou com tecidos sintéticos como lycra e microfibra não são eficazes na proteção (por volta de 15%).

Uma pesquisa feita por cientistas do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) americano, um dos mais importantes centros de pesquisa do mundo, publicado na revista Aerosol Science and Technology em dezembro de 2020, mostrou que máscaras feitas com três camadas de algodão têm poder de barrar 51% dos aerossóis que uma pessoa pode expelir em uma tosse, enquanto o bloqueio dado por uma máscara cirúrgica é 59%.

Por fim, em janeiro de 2022, um estudo também do CDC estimou que a transmissão da variante ômicron de uma pessoa infectada para outra quando as duas estão sem máscara pode ocorrer em até 15 minutos. Ao utilizar uma máscara PFF2, o paciente infectado pode transmitir o vírus para outras pessoas em um período que vai de 2,5 horas —se a outra pessoa estiver sem máscara— até 25 horas —caso tanto o paciente quanto a pessoa não infectada estejam usando uma PFF2.

CFM: "O Sars-CoV-2 é transmitido por gotículas respiratórias de tamanho maior que seriam retidas pelas máscaras faciais e partículas aerossóis mais difíceis de serem retidas por máscaras e que permanecem no ar por muito tempo".

Embora já tivessem estudos em meados de 2020 apontando que o principal meio de transmissão do coronavírus é pelo ar, o reconhecimento por autoridades de saúde globais, incluindo a OMS, sobre essa via de transmissão foi tardia, gerando questionamentos sobre a eficácia de máscaras para evitar a propagação do vírus e com foco inadequado em medidas como higienização de superfícies.

Em 2021, cientistas da Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina Americana tentaram responder a algumas das principais perguntas que ainda existiam sobre as vias de transmissão do vírus.

De acordo com Linsay Marr, engenheira e cientista de aerossóis da Universidade Virginia Tech, gotículas são partículas com mais de 100 micrômetros de diâmetro, enquanto aerossóis são menores do que esse tamanho. Como consequência, a aerodinâmica das gotículas é afetada pelo seu tamanho, com dispersão rápida e decaimento a até dois metros de distância do foco de emissão, que pode ser ao falar, espirrar ou cantar, por exemplo.

Já os aerossóis são produzidos de diversas formas, inclusive ao exalar ar, e podem permanecer em suspensão por minutos até horas, viajando e se acumulando em espaços fechados por bastante tempo.

As máscaras são consideradas eficazes em dois momentos distintos: primeiro como barreira física que segura as partículas maiores tanto do portador da máscara quanto das pessoas ao redor; e, em um segundo momento, ao diminuir a quantidade de aerossóis inalados.

CFM: "O uso disseminado e indiscriminado de máscaras traz risco aumentado de problemas de saúde na população com problemas respiratórios prévios".

Assim como em outras epidemias causadas por vírus, como de gripe (pelo vírus influenza), o conhecimento das máscaras como forma de reduzir a infecção no caso do Sars-CoV-2 já é bem estabelecido. Em contrapartida, nenhum estudo demonstrou efeitos colaterais importantes, que possam trazer mais riscos do que benefícios, aos usuários de equipamentos protetores, como máscaras.

A mesma conclusão é feita para pessoas com condições respiratórias prévias ou com outras condições médicas. Os especialistas recomendam atenção para a utilização correta das máscaras. As máscaras N95 podem ser reutilizadas diversas vezes, sempre sendo importante realizar o rodízio com uma ou duas máscaras extras, enquanto a outra fica em um local arejado para ventilação.

Um estudo brasileiro realizado com escolas em Maragogi (AL) verificou que quando alunos e professores usavam máscaras adequadas, bem ajustadas ao rosto, os casos registrados nas escolas eram significativamente menores, mesmo em um contexto de alta transmissão na cidade, em relação a quando nem profissionais nem alunos utilizavam o equipamento.

CFM: "As máscaras de pano têm eficácia limitada, podendo até ter um efeito deletério".

Um grande argumento dos especialistas que criticaram a carta do presidente do CFM foi o foco em estudos que avaliaram o uso de máscaras de pano, que já foram descartadas pelos cientistas como medidas de proteção recomendadas devido à sua baixa eficácia.

"Ninguém mais defende as máscaras de pano, e falar delas, neste momento, é ‘diversionismo’", afirma o físico e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Roberto Kraenkel.

Outro argumento do CFM é que as máscaras podem causar problemas na pele, como acne e eczema, e também prejudicar a oxigenação. Nenhum desses efeitos adversos foi comprovado em estudos científicos rigorosos sobre máscaras.

CFM: "O uso generalizado de máscaras não impacta a disseminação da Covid-19, podendo até aumentá-la".

De acordo com estudo publicado na revista americana PNAS em janeiro de 2021, o uso em massa de máscaras como medida de controle da transmissão comunitária do vírus é comprovado cientificamente.

Mais recentemente, três estudos, dois avaliando o uso comunitário de máscaras (na população geral) e um dentro de um ambiente hospitalar, mostraram que as máscaras reduzem significativamente o número de casos em ambientes fechados em comparação aos locais onde as pessoas não utilizaram (49% de redução). Outro estudo encontrou uma redução de 40% dos casos em pessoas que usaram as máscaras por pelo menos um dia ao ter interações com outras pessoas.

CFM: "[Os estudos] randomizados controlados (RCTs) sobre o uso de máscaras na população como forma de mitigar a progressão da pandemia da Covid-19 não são conclusivos".

Os estudos sobre máscaras são em geral observacionais (quando se avalia os efeitos em uma população ao longo do tempo) ou baseados em modelos epidemiológicos, e não randomizados e controlados (chamados RCTs). Mas o fato de não ser possível realizar esse tipo específico de ensaio clínico não significa que os estudos produzidos para avaliar a eficácia das máscaras não sejam rigorosos.

Na pandemia, muito falou-se sobre a avaliação da eficácia de vacinas e medicamentos para tratar a doença ou impedir a infecção por meio de ensaios clínicos randomizados, controlados e duplo-cegos (o chamado padrão-ouro em estudos de medicina baseada em evidência). Eles servem também para avaliar a toxicidade e efeitos colaterais das drogas, não sendo possível avaliar a eficácia de medidas de proteção, como as máscaras. Tais estudos seriam antiéticos e não conseguiriam eliminar fatores que podem influenciar no resultado, como o tipo de atividade a que cada pessoa se expõe e o uso adequado da máscara.

Segundo o físico e pesquisador na Universidade de Vermont (EUA) Vitor Mori, um ponto importante é que a crítica feita em um dos estudos citado pelo ofício do CFM se trata de retirar as evidências a nível individual para uma evidência coletiva. "É uma visão ultrapassada que somente ensaios clínicos randomizados podem fornecer respostas a nível populacional, e isso não é verdade", afirma.

Os estudos observacionais, como aqueles feitos a partir da avaliação de pacientes em hospitais, também foram importantes na Covid para avaliar, por exemplo, como a mistura de diferentes tipos de vacina ajudaram a proteger contra hospitalizações.

"Usar ensaios clínicos randomizados e controlados para avaliar eficácia de máscaras me parece como usar um martelo para avaliar a função de um parafuso. A conclusão acaba sendo que os resultados são pouco conclusivos", diz Mori.

CFM: "Não existe mais estado de emergência sanitária da COVID no planeta desde meados de 2022 [que justifique o uso de máscaras]".

Embora a situação da Covid esteja mais favorável neste início de 2023 do que no final de novembro de 2022, especialistas afirmam que é preciso estar atento para tendências de subida de casos mundiais, como ocorreu recentemente na China e no Japão, e que nessas situações reduzir as medidas protetoras podem ser um risco para novos surtos.

A argumentação do CFM também é que haverá um custo de máscaras desnecessário se todos continuarem a usar máscaras. Embora no início da pandemia o desabastecimento para os profissionais de saúde fosse uma preocupação, as empresas e fornecedoras de máscaras já conseguem ofertar tanto para o público geral quanto para hospitais e não há riscos de falta do produto em ambientes hospitalares.

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