Descrição de chapéu yanomami

'A sensação de impotência diminuiu', diz médica que atua na Terra Indígena Yanomami

Agora há medicação, alimentos e reconhecimento da sociedade, avalia Ana Caroline Marques

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São Paulo

Dois meses após a declaração de emergência em saúde pública e a chegada de equipes da Força Nacional do SUS (Sistema Único de Saúde) ao território yanomami, em Roraima, a médica Ana Caroline Marques afirma que "a sensação de impotência diminuiu". Agora, há mais medicamentos e alimentos e, principalmente, reconhecimento da sociedade, ela diz.

"A população yanomami está sendo vista. Antes, eu falava que era um povo esquecido e que parecia não existir para o restante da sociedade. Hoje podemos gritar e exigir condições mínimas de trabalho, clamar por melhorias", avalia.

Indígena do povo tupiniquim, no Espírito Santo, a médica conta que sempre teve vontade de trabalhar junto a povos originários e participou de programas de extensão e estágios com esse intuito enquanto estava na graduação, cursada na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

Criança yanomami internada com desnutrição na enfermaria do Hospital da Criança Santo Antonio, em Boa Vista, em janeiro - Lalo de Almeida - 25.jan.23/Folhapress

"Eu queria trabalhar onde realmente fosse necessário, onde eu soubesse que o cuidado faria a diferença na vida de alguém", afirma. E a realidade que encontrou após participar da seleção do Programa Médicos pelo Brasil e assumir o cargo no polo de Auaris, em maio de 2022, foi muito diferente de tudo que já tinha vivenciado.

Havia muitos pacientes com desnutrição, desidratação, lesões de pele, pneumonia, diarreia e verminoses. "É desesperador, porque você se sente impotente e acha que tudo vai ter um desfecho negativo. É o desafio de tentar fazer o melhor para salvar uma vida, e ao mesmo tempo, saber que seus recursos são limitados", diz, com a voz embargada.

Marques relata que faltavam medicamentos básicos, atadura, esparadrapo, e que a equipe chegou a realizar um parto com luvas de borracha, daquelas utilizadas em limpeza, porque não havia luva descartável.

Médica sorri para bebê indígena
A médica Ana Caroline Marques em atendimento em Roraima - Leitor

Para minimizar o problema, ela começou a pedir doações e a adquirir medicação por conta própria para levar a cada rotina, como é chamado o esquema de viagem.

Os médicos têm 15 dias de folga e 15 dias no Território Indígena Yanomami. Dois dias antes de viajarem de Boa Vista para os polos, eles começam a organizar a cesta de mantimentos e medicamentos. Cada polo tem uma lista de alimentos que podem ser levados, de acordo com a disponibilidade de geladeiras. Muitas unidades não têm energia elétrica, e o que é obtido por meio das placas solares é utilizado para refrigeração de vacinas.

Os funcionários entregam os alimentos e suas bagagens para pesagem, e esse material vai em um primeiro voo com as medicações e os insumos. Depois é realizado um segundo voo pela empresa de táxi aéreo contratada, este com a equipe.

Quando percebeu que faltavam itens básicos, a médica passou a levar antibióticos, antitérmicos, analgésicos e vermífugos por conta própria. "Tinha época em que estávamos com o paciente com febre e, se eu não tivesse levado dipirona, teríamos apenas a opção de resfriamento, dar banho em água fria para ver se diminuía a temperatura", diz.

"Sempre fui muito 'pidona', saía pedindo doação para os colegas e levava. Cheguei a evitar uma morte materna porque havia levado medicação para controle de hemorragia pós-parto", recorda.

Houve um momento, contudo, em que não foi possível minimizar a falta de recursos. Quando ocorreu o surto de malária, que vitimou muitos indígenas e deixou graves sequelas, não havia medicação nem testes rápidos para o diagnóstico da doença.

A capacidade para exames é um dos gargalos no atendimento. O teste para malária é o único realizado na própria região. Também há coleta de material para o diagnóstico de tuberculose, geralmente realizada um dia antes de uma viagem, para o envio para análise em Boa Vista. De resto, tudo precisa ser realizado na capital, pelo menos até a estruturação do Centro de Referência de Saúde Indígena no Polo Base de Surucucu, prevista para o fim de abril.

Outro desafio, este em transição, é a quantidade de profissionais. Marques conta que são oito médicos contratados, quatro em cada quinzena, para atender todo o território.

"Vivenciei três cenários diferentes na minha última quinzena. Os novos médicos ainda estavam em processo de contratação, recebendo orientações sobre o funcionamento das unidades de saúde indígenas, e tive contato com duas equipes de voluntários da Força Nacional do SUS", diz.

Quando chegou ao polo de Surucucu, Marques estava acompanhada de um enfermeiro, três técnicos de enfermagem e um agente de controle de endemias e havia também uma fisioterapeuta e uma nutricionista no polo. "Nós éramos insuficientes, porque para dar assistência às comunidades da região a equipe muitas vezes tem de se deslocar, caminhar por horas ou ir de helicóptero", comenta a médica.

A equipe da Força Nacional aliviou a situação, mas, quando os voluntários foram embora, dois dias depois, Marques foi acionada para vários resgates e a unidade de saúde ficou desfalcada. O cenário só voltou a melhorar no fim da quinzena, com a chegada de um novo grupo.

"A presença de profissionais precisa ser mais contínua. É algo que está caminhando para acontecer", acredita.

Os recém-chegados terão à sua disposição luvas de látex, vermífugos, sulfato ferroso para os pacientes com anemia, antibióticos, soro fisiológico e analgésicos, além de suplementos vitamínicos e nutricionais para os pacientes desnutridos —não apenas arroz, flocos de milho, leite e biscoito, como meses atrás.

"Com a distribuição de cestas básicas para as comunidades, observamos que o estado nutricional em geral está melhorando", pontua. "Ainda vamos atender casos de desnutrição, de diarreia, mas com recursos."

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