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Aborto legal com auxílio de telemedicina tem uso restrito no Brasil apesar de recomendação da OMS

Hospital de Uberlândia adotou o método devido à falta de leito para o procedimento; CFM é contra

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São Paulo

Mulheres e meninas de Uberlândia (MG) que engravidam após um estupro têm a opção de passar por acolhimento multiprofissional e exames no Hospital de Clínicas. E uma vez verificada a possibilidade de aborto medicamentoso, elas podem realizar o procedimento em casa, com orientação via telemedicina.

A iniciativa, pioneira no Brasil, é liderada pela ginecologista Helena Paro, professora da Faculdade de Medicina da UFU (Universidade Federal de Uberlândia). Pela proposta, pacientes com até nove semanas de gestação recebem comprimidos para interrupção da gravidez e vão para suas residências, onde fazem o tratamento e são monitoradas por internet ou telefone pelos profissionais de saúde (veja em detalhes na galeria de imagens).

A OMS (Organização Mundial da Saúde) e a Figo (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) defendem que o aborto medicamentoso em casa é seguro —pesquisas realizadas em países que autorizam a prática confirmam a efetividade e a segurança do método.

Lei que restringe uso do misoprostol é um dos entraves para adoção do aborto medicamentoso por telemedicina no Brasil - Catarina Pignato

O CFM (Conselho Federal de Medicina) e a presidência da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), porém, são contrários. As duas entidades alegam que o procedimento desrespeita a restrição imposta ao misoprostol, medicamento usado para induzir o aborto. Isso porque uma portaria de 1998 estabelece que ele só pode ser comprado e usado por hospitais cadastrados.

No caso do procedimento com apoio da telemedicina, a paciente recebe do hospital o medicamento, mas toma os comprimidos em casa —o que para o CFM e a Febrasgo não é permitido pelas regras atuais.

A advogada de Paro, Gabriela Rondon, refuta o argumento. "Há uma normativa da Anvisa que foi publicada em 2020 e ainda está em vigor que autoriza a utilização remota de todos os medicamentos da lista C, onde está o misoprostol", ressalta.

Paro conta que a decisão de oferecer a nova alternativa foi tomada devido ao número reduzido de leitos para aborto legal e à distribuição desigual de unidades de saúde que realizam o procedimento.

No Brasil, o aborto é permitido em três situações: quando a gestação é resultado de estupro, quando gera risco de vida para a mãe ou quando é constatada anencefalia fetal. Uma pesquisa mostra que, em 2019, apenas 3,6% dos municípios do país realizavam o procedimento, demandado por mais de 2.000 pacientes no ano passado.

O fechamento de parte desses leitos na pandemia e a possibilidade de evitar internações durante a crise sanitária também influenciaram a decisão da professora de oferecer o método, que começou a ser implementado no primeiro semestre de 2020.

Experiências bem-sucedidas em outros países foram outro aspecto considerado. Colômbia e Reino Unido, por exemplo, facilitaram a realização do aborto em casa durante a pandemia. Uma pesquisa britânica que analisou mais de 50 mil procedimentos concluiu que o uso da telemedicina é seguro, efetivo e permite reduzir o tempo de espera, possibilitando a interrupção da gestação em estágio mais precoce.

O Brasil, porém, foi no caminho contrário durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), criando novas exigências que dificultam o procedimento.

Ofícios e notas emitidos em 2020 e 2021 pelo CFM e pelo Ministério da Saúde apontaram, sem indicação de referências, possíveis efeitos adversos graves decorrentes do uso do misoprostol fora do ambiente hospitalar.

Para Cristião Rosas, coordenador nacional da Rede Médica pelo Direito de Decidir, a legislação brasileira sobre o misoprostol é uma das mais restritivas do mundo. Ele aponta que entidades como a OMS já concluíram que o uso domiciliar do medicamento é seguro.

O ministério também estabeleceu uma regra que obrigava profissionais de saúde a notificarem a polícia em casos de aborto legal e preservar evidências como fragmentos de embrião ou feto —o que dificultava a realização do procedimento em casa. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anulou o documento.

No segundo semestre de 2022, pesquisadores e ONGs pediram ao ministério o reconhecimento de que o aborto por telemedicina poderia ser realizado de forma legal e segura, mas a solicitação não foi atendida.

"Esses documentos [que dificultam o procedimento] criaram muitos problemas porque os profissionais de saúde, mesmo os que já estavam no serviço de aborto legal, ficaram com medo de realizar o procedimento", aponta a professora Cristiane Cabral, da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo).

"Eles não impediram o funcionamento do serviço em Uberlândia, mas geraram intimidação", diz Rondon, que coordena a defesa de Paro no processo administrativo que ela responde no CRM-MG (Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais).

Segundo a advogada, a investigação contra a professora foi instaurada após uma denúncia anônima e ignora a legislação sobre telessaúde. "Por mais que a lei da telemedicina não especifique esse tipo de serviço, ela é ampla o suficiente para gerar o amparo normativo para que ele possa ser ofertado por via remota", diz.

Procurado pela reportagem, o CRM-MG se pronunciou apenas na tarde desta terça-feira (4). A entidade informa que os processos ético-profissionais em tramitação correm sob sigilo, tendo os médicos amplo direito de defesa e ao contraditório.

Em nota, o Ministério da Saúde afirma que acompanha o tema da telemedicina e estuda uma forma de ampliar o uso da ferramenta de forma adequada e efetiva para toda a população. A pasta ressalta que uma série de portarias e notas técnicas que criavam barreiras aos procedimentos previstos em lei foram revogadas. Afirma, ainda, que "assegurar o acesso ao cuidado e acolhimento humanizado nos casos de aborto previstos em lei é prioridade".

Enquanto a pasta revê posicionamentos, a presidência da Febrasgo e o CFM não indicam mudança de postura no curto prazo.

Agnaldo Lopes, presidente da federação, afirma que o uso domiciliar do misoprostol é proibido e, embora existam aspectos favoráveis, como a redução de internações, é necessário reunir mais evidências e definições técnicas quanto ao controle de dispensação, por exemplo.

A opinião, porém, não é unânime dentro da entidade. Olímpio Barbosa, integrante da comissão de violência sexual e interrupção gestacional prevista em lei da Febrasgo, afirma que o aborto via telemedicina é um avanço e tem base nas mais recentes evidências científicas. Por isso, a comissão defende a expansão da prática no país.

Já o coordenador da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia do CFM, Ademar Augusto, diz que se trata de um procedimento de risco que deve ser realizado sempre em hospital, sob assistência médica.

"Não podemos comparar realidades diferentes como se elas tivessem respostas iguais. Trazer modelos que não se adaptam à nossa realidade é trazer insegurança para a população", argumenta. "Tem coisas que a OMS recomenda e que apresentamos contestações mostrando as incoerências, que não se adaptam à realidade do Brasil."

Ainda assim, Paro diz que esse é um processo sem volta: oito hospitais de diferentes regiões já estão se preparando para oferecer o aborto domiciliar via telessaúde. "Custa menos para o sistema e custa menos, social e psicologicamente, para as meninas e mulheres."

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