Futuro dos transplantes contará com inteligência artificial e órgãos de porcos

Tecnologia pode ajudar a melhorar logística; pesquisadores tentam desenvolver coração artificial

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São Paulo

Uma moça pálida, magra e de máscara aproveitava o show de jazz no Parque do Ibirapuera naquele aniversário de São Paulo. Era também seu aniversário e o cilindro portátil de oxigênio indicava que poderia ser a última celebração de sua vida. Mas não foi.

No mês seguinte, em fevereiro de 1996, ela seria a primeira mulher a passar por um transplante cardíaco bem-sucedido no Brasil e, com o novo coração, voltaria a comemorar com música. "Sou beatlemaníaca e neste ano a festa foi em um barzinho, ouvindo Beatles", conta Marcia Maluf, 70.

Dos anos 1990 para cá, os procedimentos evoluíram muito, avalia Marcia, que em 2019 passou também por um transplante de rim. E há mais transformações a caminho. Especialistas ouvidos pela Folha mencionam o avanço em xenotransplantes –quando o órgão transplantado provém de uma espécie diferente– e o uso de inteligência artificial.

Marcia Maluf, 70, foi a primeira mulher a passar por um transplante cardíaco bem-sucedido no Brasil - Eduardo Knapp/Folhapress

Fernando Bacal, diretor da Unidade Clínica de Transplante Cardíaco do Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP), afirma que a IA poderá auxiliar indicando os melhores trajetos para reduzir o tempo gasto no transporte dos órgãos. "Transplantes estão muito ligados à logística", destaca.

Hoje, existem soluções que protegem o metabolismo do coração que foi retirado e aparelhos que mantém o coração batendo e em condições adequadas para o transporte, o que permite captar órgãos a distâncias maiores. Mas ainda assim, trata-se de uma corrida contra o tempo.

"Não podemos ultrapassar quatro, cinco horas de tempo de isquemia total, quer dizer, de intervalo entre tirar o coração do doador e ele estar batendo no peito do receptor", afirma Bacal.

A inteligência artificial também permitirá o maior cruzamento de informações para avaliação da compatibilidade e das chances de sucesso da cirurgia.

Cardiologista na Mayo Clinic, nos Estados Unidos, Rohan Goswami conta que há um sistema de IA em desenvolvimento em uma pesquisa da instituição que avalia a correspondência entre doadores e receptores.

"Não estamos procurando encontrar o órgão 'perfeito', mas os melhores órgãos para os receptores que mais precisam deles. Aumentar a utilização de órgãos, melhorando a correspondência doador-receptor, é fundamental para otimizar os resultados após o transplante", diz.

A equipe de Goswami está testando ainda um sistema baseado em IA para detectar, por meio de eletrocardiogramas, o potencial risco de rejeição após o transplante cardíaco.

Bacal explica que o padrão para o diagnóstico de rejeição é a biópsia endomiocárdica, um procedimento invasivo e com riscos, e cientistas de várias partes do mundo estão estudando formas de substituir essa prática.

Além do sistema da Mayo, uma tecnologia em desenvolvimento mede a quantidade de DNA no sangue. No processo de rejeição de um órgão, ocorre a morte de muitas células, que liberam seu material genético na corrente sanguínea. Assim, quanto mais DNA do doador no sangue do receptor, maior a chance de rejeição.

Outra frente de pesquisa é a de agentes imunossupressores, os medicamentos que o receptor toma para diminuir o risco de rejeição. Em 1996, quando Marcia passou pela cirurgia, as opções no mercado causavam uma série de efeitos prejudiciais.

"Quatro anos depois do meu transplante, eu tive câncer de mama e, em 2019, perdi o rim. Agora, estou com câncer de pele. Hoje as drogas são muito mais específicas, então é tudo muito mais leve e mais fácil", compara.

Antes do primeiro transplante, Marcia viveu por oito anos com um marcapasso. Ao fim de 1995, porém, seu coração estava parando de vez e o aparelho já não era suficiente. Aos 42 anos, ela pesava 35 kg e precisava de um doador.

"Esse diagnóstico é sempre um terror, algo assustador, mas meu médico já tinha me dito que meu limite de vida era de dois a três meses, então não tinha nem o que pensar", relata. "Eu queria continuar viva".

Ainda precisaremos de transplantes?

Os cientistas também têm trabalhado para aumentar a disponibilidade de órgãos em duas frentes: bioengenharia, com tentativas de fabricar um coração artificial; e xenotransplantes, com uso de órgãos de porcos modificados geneticamente.

O primeiro transplante de coração de porco foi realizado em janeiro de 2022, nos Estados Unidos. "O paciente sobreviveu dois meses, mas foi um avanço do ponto de vista do entendimento dessa modalidade", diz Bacal.

Nas próximas décadas, essa e outras opções poderão reduzir o déficit entre o número de doações e o de pacientes com insuficiência cardíaca grave. Em 2019, o Brasil atingiu o recorde de 380 transplantes cardíacos, mas com a pandemia o número caiu e, no ano passado, foram 356 –menos da metade do necessário.

Parte do problema, diz Gustavo Ferreira, presidente da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), está na recusa das famílias em aceitar a captação de órgãos. A média de negativas no país é de 49%, o triplo da registrada em outros países.

Mas a principal dificuldade, aponta Ferreira, é a desestruturação do programa nacional de transplantes. "Com a pandemia, grande parte da estrutura de transplantes, que é multidisciplinar e envolve muitos profissionais, foi modificada. Muitos profissionais foram deslocados para o combate à pandemia e alguns locais não conseguiram se reestruturar de forma plena por falta de financiamento. Os principais centros de transplantes conseguiram se manter, mas os menores e os médios não tiveram como se recompor".

A tradutora Marcia Maluf, 70, também passou por um transplante de rim e defende a conscientização sobre a importância da doação de órgãos - Eduardo Knapp/Folhapress

Tanto o presidente da ABTO quanto Bacal afirmam que o Brasil tem capacidade de crescer em transplantes nos próximos anos. Para isso, serão necessários recursos e conscientização.

"Você não é doador porque acha que nunca vai estar naquela maca. Mas você não é onipotente e um dia você, seu filho ou sua mãe pode, sim, estar nela", desabafa Marcia. "Eu estive na maca duas vezes e fiz tudo maravilhosamente pelo SUS".

"Eu sou um Frankenstein, com um coração que não é meu, um rim que não é meu, mas muito feliz. Nunca deixei as coisas ruins tomarem o centro da minha vida. As doenças são um quartinho escuro, e a minha vida é uma sala iluminada onde toca Beatles".

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