Profissionais da saúde e moradores levam cuidados paliativos a doentes em favelas

Projeto de comunidades compassivas teve início na Rocinha, no Rio, e tem parceria com a rede pública

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Rio de Janeiro

Uma rede de voluntários formada por profissionais da saúde e moradores de favelas tem levado cuidados paliativos a doentes no fim da vida, muitos dos quais vivendo em completo abandono social.

As comunidades compassivas, como são chamadas, já existem em favelas como a Rocinha e a do morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, a Cabana do Pai Tomás, em Belo Horizonte (Minas Gerais), e na periferia de Goiânia (Goiás). Também está em vias de implantação em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo.

O conceito parte do princípio de que a própria sociedade pode ser o grande motor de mudança, e que a compaixão é um elemento essencial para isso. O projeto conta com doações e parcerias com a rede pública de saúde.

A voluntária Maria Edileusa Braga Freira, 65, anda pela Rua 2, na favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

Em geral, são pacientes com doenças graves e incuráveis, como câncer avançado e Alzheimer. Com a piora da condição clínica e a impossibilidade de locomoção, já que vivem em locais de difícil acesso, muitos deixam de frequentar os serviços de saúde e não recebem cuidado domiciliar.

São histórias de moradores como a Elisângela, 39, que morreu por complicações da Aids, o Balão, 49, que era alcoólatra e tinha tuberculose resistente e a Toninha, 62, com câncer de pulmão avançado.

"Não deu tempo nem de ela fazer os exames que o médico tinha pedido. Às 5h da manhã me ligaram que a Toninha estava passando mal, o Samu disse que não subiria no morro porque era perigoso. Tive que chamar a polícia pra levá-la para UPA. Às 16h, ela veio a óbito", relata Maria Edileusa Braga Freire, 65, moradora da Rocinha e conselheira de saúde da região.

Voluntária na favela desde os 27 anos de idade, Edileusa e outras três colegas eram conhecidas por darem banho em doentes graves acamados, muitos dos quais vivendo sozinhos em seus barracos. Um dos casos que mais a chocou foi o de um senhor com um tumor exposto no pescoço. Ele foi encontrado em meio a ratos e baratas.

"Só tivemos tempo de retirá-lo dali e levá-lo para um hospital. Morreu logo depois, mas pelo menos teve uma morte digna", lembra Edileusa.

Em 2013, o enfermeiro Alexandre Silva, professor da Universidade Federal de São João Del Rei (MG) e pesquisador na área de cuidados paliativos, conheceu o trabalho das voluntárias da Rocinha e se uniu ao grupo.

Buscou novas parcerias com profissionais de saúde e outros voluntários e alinhavou a assistência oferecida à rede pública de saúde da região. Cinco anos depois, em 2018, nascia a primeira comunidade compassiva do país.

"A ideia foi não fugir do modelo maravilhoso que é o SUS. Mas o Estado não consegue atender sozinho todas as necessidades de saúde dessa população que já muito vulnerável. Diante de uma doença grave, o sofrimento torna-se muito maior", afirma Silva.

A experiência foi apresentada no Congresso Brasileiro sobre o Luto, que ocorreu recentemente no Rio de Janeiro, e tem sido replicada pelo país.

Segundo o enfermeiro, a primeira regra para o atendimento é que o paciente elegível ao cuidado paliativo seja vinculado à unidade básica de saúde mais próxima da sua casa. A UBS recebe um resumo do plano de cuidado adotado em cada caso pelos voluntários.

Silva conta que todos os dias recebe pedidos de ajuda dramáticos vindos das unidades de saúde ou dos próprios moradores voluntários. "Estamos com o caso de uma senhora obesa, com esquizofrenia e câncer avançado, que está deitada num papelão no chão, trancada em um cômodo. Ninguém merece passar por isso."

Os profissionais de saúde voluntários, como enfermeiros, médicos, psicólogos, fisioterapeutas e assistentes sociais, realizam visitas mensais aos pacientes na favela e oferecem suporte virtual, por telefone. Atualmente, 30 pessoas no fim de vida estão sendo acompanhadas na Rocinha. Ao todo, 140 já receberam os cuidados paliativos.

A intenção do projeto não é substituir o poder público. Pelo contrário, a gente quer tensionar o poder público para que ele funcione. A questão é quem está em cuidados paliativos não tem tempo para esperar. A gente tem que agir logo para minimizar o sofrimento do doente e da família

Érika Lara

médica de família

O projeto recebe contribuições, financeiras e materiais de todo o país e que são utilizadas para demandas específicas dos doentes, como medicamentos, fraldas geriátricas, camas hospitalares, cobertura de curativos, cestas básicas, leite em pó, entre outros.

Em 2021, o mesmo modelo de comunidade compassiva foi implantado na Cabana do Pai Tomás, na capital mineira. Moradores do local, com o entregador de gás Wellington, o Neném, e a agente de saúde da família Gleice Kele, foram treinados para identificar pessoas que precisam de cuidados paliativos.

Uma vez por mês, sempre aos fins de semana, uma equipe de 25 profissionais de saúde voluntários de várias áreas, todos especializados em cuidados paliativos, atende esses pacientes em suas casas.

Segundo a fisioterapeuta Rafaela Louzada Aquino, uma das coordenadoras do projeto mineiro, os voluntários trabalham em conjunto com a rede de saúde. "As UBSs conhecem o nosso trabalho e também indicam pacientes que precisam da nossa ajuda. O SUS não consegue abarcar tudo."

Ela diz que um dos aspectos trabalhados com os profissionais voluntários é a escuta compassiva. "É preciso aprender a escutar os pacientes, o que cada família pode fazer. Não posso criar demandas para quem não têm a mínima condição financeira."

A assistência também chega ao cuidador desses doentes. "Estamos com o caso de uma idosa com Alzheimer muito avançado em que a única cuidadora é a neta. Ela está num grau de estresse tão grande que, em qualquer coisa mínima, que poderia ser manejada em casa, ela leva a avó para UPA. Nossa psicóloga liga semanalmente para ela para fazer um acolhimento."

O grupo também oferece suporte aos familiares enlutados. "Tivemos recentemente o caso de uma senhora que morreu em casa, sem sofrimento. A família já estava orientada, inclusive, para onde ligar para obter o atestado de óbito."

A voluntária Maria Edileusa Braga Freire, 65, conversa com a paciente Ângela Márcia Alves, 45, que está em cuidados paliativos, na favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

Embora o principal foco do projeto sejam os cuidados paliativos, há pacientes que, embora não estejam no fim da vida, enfrentam situações sociais que representam uma ameaça à vida. É o caso de um casal de idosos acumuladores; ele diabético e com perda de visão, e ela, hipertensa descompensada.

Vivem em um barraco sem água encanada em um terreno que está afundando. Já foram orientados a sair dali, mas não têm para onde ir. Para chegarem à unidade de saúde mais próxima, precisavam caminhar 3 km entre as vielas acidentadas. "A gente conseguiu que uma equipe de saúde da unidade básica de saúde vá até lá para fazer um acompanhamento domiciliar."

Uma outra senhora de 62 anos tem esquizofrenia e vive sozinha na favela. A enteada se apossou do seu cartão do banco, fez um empréstimo de R$ 1.600 (a mulher ganha R$ 1.800) e desapareceu. A idosa tem sido alimentada por meio de doações feitas à comunidade compassiva.

As comunidades compassivas estão integradas a cursos universitários na área da saúde. A da Cabana do Pai Tomás recebe alunos da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), e a de Goiânia, criada em agosto do ano passado, da PUC de Goiás.

Segundo a médica de família e comunidade Érika Lara, professora da PUC e coordenadora da Goiânia compassiva, a escolha dos locais a serem atendidos pelo projeto é feita em conjunto com a rede de saúde, priorizando as unidades de saúde com maior demanda de cuidados paliativos.

Com ajuda dos moradores voluntários, o grupo localiza as famílias que precisam de suporte, identifica as demandas e elabora o plano de cuidados para cada caso.

"A intenção do projeto não é substituir o poder público. Pelo contrário, a gente quer tensionar o poder público para que ele funcione. A questão é quem está em cuidados paliativos não têm tempo para esperar. A gente tem que agir logo para minimizar o sofrimento do doente e da família."

Para saber mais sobre como se tornar um voluntário do projeto, entre no site da iniciativa ou no Instagram @comunidade_compassiva.

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