Saúde em Público

Políticas de saúde no Brasil em debate

Saúde em Público -  Instituto de Estudos para Políticas de Saúde
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Acolhimento: como balancear a oferta e a demanda de saúde na Atenção Básica?

Estratégias para fortalecer a oferta de serviços de saúde precisam estar ligadas às particularidades de cada território

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Agatha Eleone Caio Rabelo Maria Heloisa Lira Rodrigues dos Santos

Falar sobre acesso, acolhimento e processos de trabalho na Atenção Básica (AB) brasileira é sempre desafiador, seja na perspectiva dos profissionais, da gestão ou dos usuários. Por um lado, a demanda por serviços de saúde só aumenta, principalmente no que diz respeito às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs) — seja pelo envelhecimento progressivo da população, seja pelas demandas represadas desde a pandemia de Covid-19. Por outro lado, a oferta de saúde é insuficiente, uma vez que o Brasil ainda não dispõe de cobertura universal em AB.

Tudo isso resulta em problemas já conhecidos: pessoas chegando à unidade antes do horário de abertura para garantir o atendimento, irritação com filas e demora. No limite, há relatos de práticas inadequadas e desvio de conduta de cidadãos, como a "venda" de lugares na fila para atendimento. Afinal, como é possível oferecer um serviço resolutivo se a pressão assistencial é sempre alta e não há tempo para planejamento?

Modificar essa realidade exige um esforço conjunto da gestão e dos profissionais de saúde. É necessário desenvolver tecnologias "leves", que olhem para aspectos sociais, comportamentais e organizacionais, melhorando gradualmente as ações e processos das equipes; também são necessárias tecnologias "duras", que têm por base componentes físicos, materiais e digitais, como as melhorias na ambiência das unidades e na informatização dos serviços da atenção básica. Essas tecnologias combinadas facilitam o processo de trabalho, a autogestão das equipes de saúde da família e a capacidade de realizar uma gestão da clínica eficiente, priorizando a oferta de saúde para os territórios e indivíduos que mais precisam.

Um desafio adicional a se considerar para o sucesso das intervenções é a progressiva digitalização da saúde. É preciso combinar a organização de fluxos de acesso e acolhimento na AB com a perspectiva de avanço da saúde digital, uma vez que há uma preocupação imediata com a inclusão da população que acessa esse serviço, o que chamamos de "dilema Daniel Blake". No filme "Eu, Daniel Blake" (2016), de Ken Loach, um senhor inglês tem seu acesso a benefícios de previdência social constantemente negado por diversos motivos, como a falta de letramento digital. Esse dilema ilustra como as ferramentas digitais, que hipoteticamente tornam os serviços mais simples, eficientes e acessíveis, podem agir contra os princípios basilares de universalidade, integralidade e equidade, que fundamentam sistemas como o SUS, e rotinas da atenção básica, como o acolhimento.

Para evitar a exclusão de grandes parcelas da população na atenção básica, a informatização dos serviços deve vir subsidiada pela participação da equipe de saúde e dos usuários, com a finalidade de integrar e informar todos os atores envolvidos no processo. Ou seja, se há a possibilidade de agendamento de consultas, procedimentos ou teleatendimentos utilizando aplicativos, por exemplo, é preciso capacitar a equipe de saúde para interagir com a população e facilitar esse acesso, seguindo a lógica territorial e comunitária da atenção básica como vetor para atingir a transformação social e digital.

Profissional da saúde com jaleco do SUS vacina mulher dentro de sala
Vacinação na Upinha Morro Conceição, no Recife - Foto: Daniel Tavares/Prefeitura do Recife

Pensando nisso, o projeto Qualifica AB, construído pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e pela Secretaria de Saúde do Recife (SESAU), com o apoio da Umane, está co-criando um modelo que estrutura a rotina de acolhimento de cidadãos nas unidades básicas de saúde a partir do diálogo com profissionais e gestores. O objetivo é alcançar o melhor processo de trabalho possível a partir da realidade de cada equipe de saúde da capital pernambucana.

O modelo proposto pelo Qualifica AB envolve quatro passos. O primeiro consiste em mapear o fluxo de pessoas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). O segundo visa estudar quais são as principais demandas que chegam na porta da unidade de saúde e nos consultórios, compreendendo o perfil da população que acessa o serviço e os motivos da busca pela UBS. Nesse quesito, importa dizer que a "não procura" pela UBS também possui relevância. Para o mapeamento, foram desenvolvidas ferramentas que permitem a análise da demanda por tipo, dia da semana, horários e condição clínica do usuário ou usuária.

O terceiro passo envolve analisar o atual processo do acolhimento através dos dados coletados, estabelecendo novas intervenções, protocolos e fluxos a partir de parâmetros mínimos estabelecidos pela Secretaria de Saúde do Recife. O quarto e último passo busca avaliar as mudanças a partir de indicadores de processo co-criados com gestores locais.

Há várias maneiras de pensar o acolhimento: acesso avançado, modelo de repartição de agenda (carve out), ou acolhimentos realizados pela equipe do dia, pela equipe de referência, ou ainda coletivamente. Muitas vezes, as gestões municipais decidem por adotar um modelo único para todas as equipes e Unidades, à revelia das particularidades de cada território. Em outras ocasiões, as equipes de saúde ficam perdidas em meio a tantos modelos teóricos para acolher os cidadãos.

A inovação do Qualifica AB está em não focar em modelos prontos, mas apostar no estudo da demanda e no fortalecimento dos processos de trabalho, com pactuações internas das equipes para aumentar a oferta de saúde (como consultas coletivas, grupos, encaminhamentos intersetoriais). Essa é uma das diretrizes do projeto para construir estratégias atentas às demandas de cada unidade de saúde e diminuir as barreiras de acesso dentro desse processo tão desafiador.

Agatha Eleone é Analista de Políticas Públicas do IEPS. Caio Rabelo é Gestor de Projetos do IEPS; e Maria Heloisa Lira Rodrigues dos Santos é Residente em Saúde Coletiva no IMIP.

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