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Engov: por que remédio visto popularmente como 'cura para ressaca' não tem essa indicação em bula?

O medicamento ganhou fama nos anos 1960, nas telenovelas; seu uso para aliviar os sintomas do abuso de álcool deve seguir algumas precauções

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André Biernath
Londres | BBC News Brasil

Durante décadas, a frase "um Engov antes, outro depois" foi um mantra entre as pessoas que iriam consumir álcool e desejavam aliviar os sintomas da ressaca —aquela sensação desagradável de náusea, enxaqueca e indisposição que aparece no dia seguinte.

A medicação, inclusive, é um dos mais frequentes integrantes do chamado "kit ressaca" disponibilizado em bares e baladas, ao lado de soluções contra azia ou queimação e de protetores hepáticos.

No entanto, em bula, este produto está indicado apenas para tratar dor de cabeça e alergias —e, como você verá ao longo desta reportagem, não existe nenhum tratamento farmacológico com eficácia comprovada para lidar com os efeitos de uma bebedeira intensa.

E, ao contrário do que o imaginário popular acredita, tomar Engov junto com o álcool pode até ser prejudicial à saúde.

Para entender essa história, é preciso antes conhecer o caminho que os drinques fazem pelo sistema digestivo.

Mulher olhando para mesa com drinque e comprimidos
No geral, misturar remédios e álcool não é uma boa ideia, orientam autoridades de saúde - Getty Images

Trabalho extra ao fígado

O hepatologista Raymundo Paraná, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, explica que o álcool começa a ser metabolizado no estômago e no intestino delgado.

"Já no fígado, ele passa por uma segunda etapa de metabolização. Ali, forma-se o acetaldeído, uma substância tóxica que está relacionada aos sintomas da ressaca", diz.

"Essa molécula dilata os vasos sanguíneos, o que provoca vermelhidão na pele, dor de cabeça e outros sintomas comuns", exemplifica ele.

Além dos incômodos citados pelo médico, algumas vítimas da ressaca também sofrem com náuseas, vômitos, indisposição e sensibilidade à luz.

As bebidas ainda promovem duas outras ações no corpo que repercutem na manhã posterior. Primeiro, elas estimulam a diurese (a vontade de ir ao banheiro para fazer xixi). É por isso que a pessoa acorda desidratada e com muita sede.

Segundo, há uma perda das reservas de glicogênio no fígado, uma espécie de estoque de energia que temos neste órgão. "E isso faz com que o indivíduo também acorde com fome e vontade de comer doces", complementa Paraná.

É justamente para evitar todas essas sensações desagradáveis que muita gente recorre às supostas estratégias preventivas —e, entre elas, o Engov está entre as opções farmacológicas mais populares.

Mulher acordando com ressaca
A ressaca tem a ver com o acetaldeído, uma substância produzida pelo fígado a partir da metabolização do álcool - Getty Images

Histórico inusitado

No livro "Vaudeville - Memórias", o jornalista e empresário Ricardo Amaral traz um relato curioso de como o Engov teria sido inventado.

Ele conta que fazia um passeio para Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, num veleiro que pertencia a Dirceu Fontoura, o dono do laboratório farmacêutico que fabricava o famoso biotônico que leva o mesmo sobrenome. Isso teria ocorrido em meados dos anos 1960.

"Por lá passavam todos os internacionais que pintavam no Rio", destaca o escritor.

"Foi lá que assisti a um momento histórico para os porristas deste Brasil. Dr. Albert Sabin, o famoso inventor da vacina contra a paralisia infantil [...], vendo todo o grupo beber quantidades respeitáveis de álcool, escreveu uma fórmula e presenteou o anfitrião."

"Nascia ali o Engov, criado pelo fantástico cientista. Coisas deste país", conclui Amaral.

A descrição sobre as origens do produto, no entanto, não aparece em outras fontes históricas —e a Hypera Pharma, atual fabricante do Engov, não respondeu às perguntas da BBC News Brasil até a publicação desta reportagem.

Mas há um fato que certamente contribuiu para a fama deste fármaco até hoje: a telenovela "Beto Rockfeller", transmitida pela TV Tupi entre 1968 e 1969.

O ator Luiz Gustavo, o protagonista da trama, afirmou em diversas entrevistas que não recebia "um tostão" do canal de televisão, que passava por uma crise financeira. Por isso, criou, meio sem querer, o que é chamado hoje de "merchandising".

"Inventei a coisa junto com o laboratório Fontoura", relatou Gustavo, numa reportagem da Folha publicada em 1994.

"Prometeram pagar um 'xis', não lembro quanto, toda vez que o Beto [Rockfeller] citasse o remédio Engov no ar."

Ele passou então a citar o nome do medicamento até seis vezes em cada capítulo da novela.

"Ninguém entendia nada. O resto do elenco e os diretores da Tupi viviam me perguntando porque citava tanto o Engov. Eu, claro, ficava na moita, nunca abria o jogo", lembrou o ator, que faleceu em 2021.

A direção da TV Tupi chamou Gustavo para uma conversa e o alertou que um dos patrocinadores de Beto Rockefeller —um outro laboratório farmacêutico— estava incomodado. Afinal, eles também possuíam um remédio que prometia curar a ressaca, chamado Alka Seltzer.

Para agradar o anunciante, a direção do canal de televisão acrescentou uma fala no roteiro da novela, que foi dita pelo personagem Carlucho, interpretado por Rodrigo Santiago:

- Nossa, que ressaca! Bebi demais na festa de ontem à noite. Mas agora vou melhorar. Acabei de tomar um Alka Seltzer.

Como relata a Folha, Luiz Gustavo não perdeu a deixa. Ele disse em cena: "Você é burro, Carlucho. Devia seguir o meu exemplo. Tomei um Engov antes da festa, outro depois, e hoje estou zerinho."

Os capítulos da novela eram gravados poucas horas da exibição, então a TV Tupi não teve tempo de editar o diálogo antes que ele fosse ao ar, detalha a matéria.

Albert Sabin
Diz a lenda que o cientista Albert Sabin, inventor da vacina contra a pólio, deu a ideia por trás do Engov durante uma visita ao Brasil - Getty Images

Um comprimido, quatro substâncias

De acordo com o rótulo e a bula, o Engov é composto de quatro substâncias, e cada uma delas tem uma função diferente.

O maleato de mepiramina (15 miligramas) é um anti-histamínico e atua contra alergias. O hidróxido de alumínio (150 mg) diminui a acidez do estômago e alivia a azia e as náuseas. O ácido acetilsalicílico (150 mg) —o mesmo princípio ativo da aspirina— atua contra as dores de cabeça, entre outras funções. Por fim, a cafeína (50 mg) é um estimulante, que também pode ajudar a diminuir enxaquecas.

Oficialmente, o Engov é indicado para "o alívio dos sintomas de dores de cabeça e alergias" —e não há nada na bula que mencione diretamente prevenção ou melhora da ressaca.

"Ou seja, falamos aqui de uma associação de substâncias que, na percepção pública, formam um medicamento contra a ressaca, ou contra o 'pé na jaca', digamos assim", avalia o farmacêutico André Bacchi, professor da Universidade Federal de Rondonópolis, em Mato Grosso.

"Porém, o máximo que esse produto promove é um alívio de alguns sintomas específicos", complementa o especialista.

Na visão de Bacchi, a visão popular sobre o Engov pode até ser prejudicial. "Ao enxergá-lo como uma solução contra a ressaca, a pessoa acaba bebendo mais por sentir que está resguardada pelo efeito do remédio", alerta.

Tomar este fármaco junto com o álcool como uma estratégia para prevenir a ressaca, aliás, é algo desencorajado na própria bula.

"Este medicamento é contraindicado para pacientes com histórico de alcoolismo crônico, [ou que ingerem] outras substâncias que deprimem o sistema nervoso central ou bebidas alcoólicas", diz o texto.

Essa recomendação tem a ver com dois motivos principais. Primeiro, porque "alguns efeitos do ácido acetilsalicílico no trato gastrointestinal podem ser potencializados pelo álcool", ainda segundo a bula.

E isso, por sua vez, pode agredir o estômago e levar a quadros de gastrite.

Segundo, a associação do álcool com o anti-histamínico da fórmula (o maleato de mepiramina) potencializa o efeito sedativo relacionado às duas substâncias.

Ou seja: aquela sensação de ficar alheio à realidade causada pela bebedeira pode ficar ainda mais forte pela mistura de drinques com esses comprimidos.

Como mencionado anteriormente, a BBC News Brasil entrou em contato com a Hypera Pharma, para que o laboratório pudesse se posicionar a respeito das questões apresentadas, mas não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.

Questionada sobre números de vendas da medicação, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), disse que o "Engov é registrado por apenas um fabricante, e portanto, por questões de sigilo empresarial, não é possível repassar informações comerciais sobre ele".

O que fazer?

Segundo os especialistas, a única forma realmente comprovada de evitar uma ressaca é não beber —ou ao menos moderar no consumo.

"Não existe uma fórmula mágica", atesta a psiquiatra Olivia Pozzolo, pesquisadora do Centro de Informações Sobre Saúde e Álcool (Cisa), em São Paulo.

"Vale tentar beber o mínimo possível e adotar algumas estratégias básicas, como tomar água entre uma dose e outra, comer algo para que o estômago fique cheio, espaçar o tempo entre um copo e outro...", lista a especialista.

Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) defenda atualmente que não existe quantidade segura de álcool, o consumo moderado é classificado como uma dose para mulheres e duas para homens por dia —há uma diferença na forma como essa substância é metabolizada no organismo masculino e feminino.

E o Engov? Será que ele pode ser tomado no dia seguinte, quando os sintomas da ressaca dão as caras?

"Talvez a pessoa que usa esse medicamento até possa sentir algum efeito e ficar mais sedada ou melhorar da azia", responde Bacchi.

Porém, de acordo com o farmacêutico, o mais adequado nesses casos seria o indivíduo avaliar quais são exatamente os incômodos que está sentindo e buscar medicações específicas para aliviá-los.

"Para a dor de cabeça, é possível tomar um analgésico específico, como a dipirona. Se há muita náusea, um antiemético reduz a sensação de vômitos. E assim por diante", exemplifica ele.

Paraná também lembra a importância de outras medidas não farmacológicas nessas 12 a 24 horas em que a ressaca teima em assolar o corpo.

"É importante se hidratar bem para repor os líquidos, comer alimentos leves e fazer repouso", conclui o hepatologista.

Texto foi publicado originalmente aqui.

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