Descrição de chapéu Doenças Crônicas

Tratamento da hemofilia dá salto, mas diagnóstico e cirurgia ainda são desafios

Com chances reduzidas de sangramento, crianças com a doença hoje podem correr e brincar

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São Paulo

"Antigamente, eu chegava ao ambulatório e olhava na sala de espera quem tinha carinha de mais dor para ser atendido primeiro. Hoje, minha sala de espera é cheia de crianças pulando e brincando." A doença dos pacientes atendidos pela hematologista Claudia Lorenzato é a mesma, hemofilia, mas o tratamento mudou drasticamente nas últimas décadas –e com ele a qualidade de vida.

Doença de origem genética, a hemofilia é caracterizada pela falta de uma das proteínas necessárias para a coagulação do sangue. Segundo o último relatório da Federação Mundial de Hemofilia, lançado em 2022, o Brasil registra a quarta maior população de pacientes com a doença do mundo, atrás de Índia, China e Estados Unidos. São 13.337 pessoas com a enfermidade no país, sendo 11.141 com hemofilia A e 2.196 com hemofilia B.

Pessoas com hemofilia do tipo A têm deficiência do fator de coagulação VIII, enquanto aquelas com hemofilia B, déficit do fator IX. Sem essas proteínas, elas estão sujeitas a sangramentos constantes, sobretudo nos casos mais graves, quando a produção natural dos fatores é ínfima.

Tania Maria Onzi Pietrobelli, presidente da Federação Brasileira de Hemofilia, e mãe de filho com hemofilia - Carlos Macedo/Folhapress

Os sangramentos ocorrem principalmente nas articulações, incluindo joelhos, cotovelos e tornozelos, danificando a cartilagem nesses locais. "Os sangramentos vão destruindo as articulações e provocando dor, deformidade e perda do movimento", diz o ortopedista Luciano Pacheco.

"Até 2012, os pacientes desenvolviam sequelas porque, em vez de serem tratados preventivamente para não sangrarem, sangravam para depois serem tratados", compara Tania Maria Onzi Pietrobelli, presidente da FBH (Federação Brasileira de Hemofilia) e mãe de um homem com hemofilia.

A prevenção, ou profilaxia, foi uma revolução para quem convive com a doença, porém ainda há desafios. O diagnóstico pode demorar e há uma fila de espera pela cirurgia para aqueles que ficaram com sequelas.

Primeira geração de pacientes

Na maioria das vezes, os pacientes herdam um ou dois cromossomos X (no caso das mulheres) com uma mutação que afeta os genes responsáveis pela produção dos fatores VIII ou IX. Entretanto, em 30% das ocorrências não há nenhum familiar portador dessa alteração.

Nessas situações em que o paciente sofreu a mutação durante o desenvolvimento embrionário e é a primeira geração da família com hemofilia, o diagnóstico pode ser demorado. Por não haver nenhum parente com hemofilia, a doença não é considerada de imediato e os hematomas e sangramentos podem levar a hipóteses clínicas como maus-tratos, conta Margareth Castro Ozelo, diretora da Divisão de Hematologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

"É por esse motivo que fazemos campanha junto aos pediatrias", diz Lorenzato, que atua no Hemepar (Centro de Hematologia e Hemoterapia do Paraná). "Mesmo que a criança não tenha histórico familiar, se ela tem muitos hematomas, se tem inchaço nas articulações, edema que indica sangramento intra-articular, se o músculo sangrou na vacina, é importante encaminhar para avaliar se não é hemofilia", orienta. A doença é identificada por meio de exames de sangue.

O filho de Tania Pietrobelli, Christian, faz parte desse grupo. Ele nasceu em 1980 e o diagnóstico de hemofilia A foi um choque, lembra a mãe. Na época, não havia tratamento preventivo no Brasil e pacientes os dependiam de transfusões a cada sangramento. Sem padrões rígidos nos bancos de sangue, muitos pacientes se contaminavam com HIV ou hepatite, como ocorreu com os irmãos Henfil, Betinho e Chico Mário.

Com Christian foi diferente porque a família descobriu que alguns países ofereciam o tratamento com o fator de coagulação concentrado e as crianças que recebiam a proteína tinham uma vida normal. Elas podiam correr e brincar com chances reduzidas de hematomas, sangramentos e, consequentemente, danos nas articulações. O menino cresceu sem dores e sequelas, frequentou a escola e tornou-se médico.

Tania levou a história de Christian ao Senado para pleitear mais recursos para o tratamento da hemofilia e exemplificar a importância da profilaxia. Em 2012, a aplicação do fator deficiente passou a ser oferecida de forma rotineira no SUS para pacientes com hemofilia grave ou moderada com sangramentos.

Esses pacientes têm o direito de retirar gratuitamente no hemocentro da sua região um estoque do fator de coagulação referente a um mês de aplicações e, dependendo da gravidade da doença, aplicam a proteína uma, duas ou três vezes por semana.

‘Eu gritava de dor’

Fábio Ferreira não vai esquecer os amigos que perdeu para a doença. Também segue na memória a dor que sentia a cada sangramento. "Eu gritava, urrava de dor", diz. Diagnosticado na infância com hemofilia B, ele passou dias na UTI depois de bater a cabeça durante um jogo de futebol e chegou a ter hemorragia na coluna simplesmente por dormir de mau jeito.

Também de 1980, ele não teve acesso à profilaxia e imaginava o dia em que poderia realizar a cirurgia para colocação de próteses nos joelhos. "Em 25 de agosto de 2017, quando dei entrada no hospital, senti a dor nos joelhos pela última vez."

"Vi o doutor Kubota [Marcelo Seiji Kubota, ortopedista responsável pela cirurgia], a equipe, e perguntei se era ali que ia me transformar em Homem de Ferro", recorda o bancário, que também é músico se apresenta como Nego Som Charme.

Ferreira não virou um super-herói, mas não tem dúvidas de que se transformou. "Quando acordei e vi as minhas pernas retinhas, não consigo descrever a emoção que senti. Quando fiquei de pé e vi que estava retinho, que tinha ficado até mais alto, não acreditei."

A cirurgia foi possível porque ele se preparou durante meses com sessões de fisioterapia e porque o plano de saúde oferecido pelo banco em que trabalha arcou com os custos. Porém essa não é realidade para aqueles que dependem do SUS.

Tania Pietrobelli e Luciano Pacheco estimam que há centenas de pessoas com hemofilia aguardando pela cirurgia, que demanda próteses de qualidade para evitar substituições em intervalos curtos e uma equipe multidisciplinar especializada no atendimento a pessoas com problemas de coagulação.

"Poucos centros realizam essa cirurgia", lamenta o ortopedista, que tem um livro publicado sobre o assunto ("Ortopedia e Fisioterapia em Hemofilia"). Para ele, os pacientes poderiam compor uma lista de espera separada e deveriam ser priorizados em virtude do impacto das sequelas na funcionalidade e na qualidade de vida. "Eles sofrem, têm dor e alguns acabam ficando viciados em opioides, o que é bem complicado de tratar. São pacientes que têm um sofrimento crônico."

Além da realização de cirurgias, os entrevistados listam demandas como a oferta dos fatores de coagulação para períodos de dois meses, reduzindo as visitas aos hemocentros; a atualização das terapias, favorecendo opções de longa duração, que diminuem a necessidade de aplicações; normalização dos estoques e investimentos nos hemocentros. A FBH afirma que está trabalhando nesse sentido.

Erramos: o texto foi alterado

Os pacientes têm hemofilia A ou hemofilia B, não hepatite, como publicado em trecho da versão anterior desta reportagem. 
 

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