Governo de SP tem gasto recorde com cannabis medicinal para atendimento a decisões judiciais

Despesa foi de quase R$ 26 milhões entre janeiro e outubro; ações contra o estado cresceram mais de 1.000% desde 2018

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São Paulo

O gasto do estado de São Paulo com a compra de remédios à base de maconha após determinações judiciais atingiu recorde em 2023. De janeiro a outubro, R$ 25,6 milhões foram destinados ao atendimento de 843 ações movidas por pacientes.

O valor corresponde a quase um terço de tudo o que o estado já gastou com cannabis medicinal desde 2015, quando a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) autorizou pela primeira vez a importação de produtos com CBD (canabidiol) para o Brasil. A despesa total se aproxima dos R$ 85 milhões.

A judicialização como forma de acesso ao tratamento, ainda indisponível pelo SUS (Sistema Único de Saúde), cresce continuamente no estado desde 2018. Naquele ano, 71 pacientes ganharam direito ao tratamento após recorrer ao judiciário. Em 2020, o número saltou para 200, e no ano passado para 576. Em 2022, o gasto público com a aquisição dos medicamentos foi de R$ 24,1 milhões.

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Óleo de canabidiol extraído da maconha por associação de pacientes. - Adriano Vizoni - 11.set.2019/Folhapress

"Muitas vezes a ordem judicial já vem direcionada para uma marca, ou impõe quantidade e por quanto tempo o estado tem que fornecer. Não existe margem para negociação, e isso com certeza eleva os valores, já que não tem como você fazer uma cotação e disputa de preços, como ocorre numa licitação", explica o advogado Leonardo Navarro, membro da Comissão do Direito da Cannabis Medicinal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

Segundo o especialista em direito da saúde, a alta na judicialização é explicada pelo avanço de pesquisas e aumento das indicações de uso medicinal dos canabinoides. "Quando surge uma nova possibilidade terapêutica para diversos tratamentos, como autismo, dor crônica, alzheimer e várias outras doenças, a gente passa a ter um grande número de pacientes que podem se beneficiar. E à medida em que os médicos estão prescrevendo, essas demandas [judiciais] também tendem a crescer", acrescentou Navarro.

De acordo com a consultoria Kaya Mind, o número de pacientes de cannabis medicinal no Brasil saltou de 188 mil no ano passado para 430 mil neste ano –alta de 165%. Ainda de acordo com a empresa, especializada em dados e inteligência de mercado no segmento, o país tem cerca de 12 mil médicos que já prescreveram produtos com CDB ao menos uma vez.

A judicialização também vem crescendo em nível federal. Em 2021, o Ministério da Saúde gastou R$ 160.690 com a compra de medicamentos à base de CBD. No ano seguinte, a despesa saltou para R$ 1.671.701 –alta de 940%. No primeiro trimestre de 2023, o governo já havia gastado R$ 767.906.

"A judicialização, inevitavelmente, causa um efeito caixa muito pior do que se nós tivéssemos uma política de fornecimento desses medicamentos no SUS. O estado poderia controlar a compra e estoque, gerenciar o fornecimento e acompanhar o uso pelos pacientes. Hoje não tem controle se o produto está sendo usado de forma adequada e se está trazendo benefícios terapêuticos", afirma Navarro.

Hoje, a legislação brasileira prevê duas formas de acesso à cannabis medicinal. A primeira é a importação pelo próprio paciente, mediante prescrição médica e autorização da Anvisa –no primeiro trimestre do ano, a agência recebeu em média 360 solicitações por dia.

A alternativa é a compra em farmácias, também com apresentação de receita médica. Atualmente, 34 produtos têm autorização sanitária e podem ser comercializados no país.

Existem ainda, em menor número, associações que obtiveram o direito ao cultivo da planta para produção artesanal do óleo medicinal para pacientes cadastrados e com indicação médica. A Justiça também já concedeu em diversas ocasiões salvo-condutos para plantio doméstico da cannabis.

Diagnosticada com um grave transtorno de ansiedade em 2018, a representante comercial Aline Chinelatto, 37, conheceu a cannabis medicinal após incontáveis tentativas de tratamento com remédios convencionais, que não apresentavam resultado. "Eu não conseguia viajar de avião ou dirigir, pois tinha crises de pânico e queria abandonar o carro no meio da rodovia", relatou a moradora de Campinas, no interior.

Ela conta que o CBD foi apresentado como última alternativa, mas que o preço se tornou impeditivo: R$ 1.500 pelo frasco do produto importado. Para obter acesso à medicação, teve que recorrer ao Judiciário, e após longo processo iniciou o tratamento em dezembro passado, com o produto fornecido pelo estado. "Fiquei três anos sem visitar minha mãe no litoral, porque não conseguia passar pelos túneis da Serra do Mar. Foi só depois de associar outras medicações à cannabis que eu tive melhora e consegui viajar sozinha".

A incorporação de novos medicamentos ao SUS é avaliada pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde), vinculada ao Ministério da Saúde. Procurado, o órgão disse que não possui estudos para incluir o CDB no sistema de saúde.

Em meio à indefinição federal, ao menos 13 unidades da federação já aprovaram leis próprias para a distribuição gratuita de medicamentos do tipo. Apesar do avanço legislativo, as políticas estaduais ainda não saíram do papel por falta de regulamentação.

Em São Paulo, o fornecimento gratuito de remédios à base de CBD e outras substâncias presentes na maconha, como o THC (tetrahidrocanabinol), foi sancionado em fevereiro. Segundo a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos), o tratamento será disponibilizado a princípio para portadores de três doenças convulsivas e de difícil controle: Síndrome de Dravet, Síndrome de Lennox-Gasteaux e esclerose tuberosa.

O atraso na regulamentação, que tinha prazo inicial de 90 dias, foi justificado pela necessidade do governo reunir estudos científicos que comprovassem eficácia e segurança do tratamento. Por meio de nota, a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que o texto da regulamentação já foi "tecnicamente finalizado" e está em avaliação pela Secretaria da Casa Civil.

Flores de maconha e óleo de CBD importados com autorização da Anvisa. Recentemente, agência voltou a proibir importação de cannabis in natura. - Pedro Ladeira - 29.jun.2023/Folhapress

Segundo o médico José Luiz Gomes do Amaral, responsável por coordenar o grupo de trabalho que elaborou as diretrizes da nova lei, o CBD será utilizado como medicação complementar quando o paciente for resistente a outros remédios. O protocolo clínico prevê acompanhamento dos pacientes a cada seis meses e interrupção do tratamento se detectados efeitos adversos ou caso a frequência das crises convulsivas não tenha redução de pelo menos 30% a cada checagem.

O médico afirma que o estado já atendeu demandas judiciais para fornecer medicação a pacientes com 188 diagnósticos diferentes. Segundo Amaral, grupo do governo reuniu as 20 condições mais frequentes e identificou que para mais da metade delas não havia "evidência suficiente" que justificasse o tratamento com o canabidiol.

"Eu acredito que à medida que continuemos estudando as e evidências científicas a judicialização vai diminuir, porque os juízes vão entender que determinadas situações clínicas já foram estudadas e que a indicação não é adequada", disse.

Ainda sem previsão para iniciar a distribuição do CBD, o governo chegou a lançar um edital em setembro para registro de preços e futura aquisição dos produtos, mas segundo Amaral, as empresas inscritas não se adequaram às exigências da licitação. Procurada, a SES afirmou por meio de nota que um novo processo licitatório será realizado após publicação do decreto.

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