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Eficácia da Qdenga muda de acordo com sorotipo; variação preocupa especialistas

Imunizante apresenta boa proteção contra tipos 1 e 2, mas pode deixar população vulnerável aos vírus 3 e 4

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São Paulo

A incorporação no SUS (Sistema Único de Saúde) da vacina contra dengue da farmacêutica Takeda, a Qdenga, foi recebida com grande entusiasmo por parte da população e autoridades de saúde. Com recorde de casos em 2023, a doença continua sendo um problema de saúde pública importante.

Segundo o Ministério da Saúde, é esperado aumento de casos na maior parte do Brasil, principalmente no Sul (especialmente no Paraná), Sudeste (Minas Gerais e Espírito Santo) e Centro-Oeste. O Nordeste deverá ficar abaixo do limite epidêmico.

O mosquito Aedes aegypti, responsável por transmitir dengue, chikungunya e zika vírus - AFP

Em 2023, o Brasil bateu o recorde de mortes por dengue com 1.094 óbitos, o maior número desde o início da série história. Neste ano, o país pode ter cerca de 5 milhões de novos casos. Assim, uma vacina que possa reduzir casos graves e internações traz esperança.

A primeira cidade brasileira a realizar a vacinação é Dourados (MS), que tem com objetivo imunizar 150 mil moradores de 4 a 59 anos. No entanto, alguns virologistas demonstram preocupação com a vacinação desta abrangência no local devido à falta de dados que indiquem à eficácia do imunizante em proteger contra os sorotipos 3 e 4.

O registro recente de casos de dengue causada pelo tipo 3 em alguns estados traz um alerta sobre a possibilidade de ocorrer efeito adverso relacionado à vacinação.

A dengue é uma doença viral em sua maioria dos casos leves, mas a ocorrência de uma segunda infecção por outro sorotipo pode levar a casos graves. Como a vacina protege principalmente contra os sorotipos 1 e 2, um dos riscos apontados por especialistas é que vacinados infectados pelos sorotipos 3 e 4 podem ter o agravamento do quadro. Estudos realizados pela fabricante, porém, sugerem que não há risco de agravamento.

Na avaliação do Ministério da Saúde, contudo, os benefícios superam os possíveis riscos ligados ao imunizante.

Entenda abaixo as diferentes taxas de proteção da Qdenga, o público-alvo indicado, como vai ocorrer a vacinação no país e os possíveis riscos associados.

O que é a vacina contra a dengue?

A vacina Qdenga contém o sorotipo 2 do vírus atenuado e modificado para apresentar também os demais tipos 1, 3 e 4, o que estimula o organismo a gerar anticorpos.

O imunizante é aplicado via subcutânea, em duas doses, com intervalo de três meses. A aprovação foi recebida pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em março de 2023 para pessoas de 4 a 60 anos.

Segundo a bula do fármaco, a Qdenga não deve ser aplicada em gestantes, lactantes, pessoas alérgicas a algum dos componentes da vacina e aqueles com problemas no sistema imunológico, como HIV, questões genéticas ou que estão em tratamento que afeta as defesas do corpo.

Qual a eficácia e contra quais tipos de dengue a vacina tem proteção?

Em testes conduzidos em oito países na Ásia e na América Latina (Brasil, Colômbia, República Dominicana, Nicarágua, Panamá, Filipinas, Sri Lanka e Tailândia), a vacina teve eficácia de 80% contra os casos de dengue confirmados 12 meses após a segunda dose, e reduziu as hospitalizações em 90,4% nos 18 meses após a segunda dose.

Em relação à eficácia por sorotipo, a análise mostrou uma proteção variável para cada um, sendo de 69,8% contra o sorotipo 1 e 95,1% para o tipo 2, demonstrando uma boa proteção para este último.

"É uma vacina extremamente boa para os tipos 1 e 2, que ainda são predominantes no Brasil", avalia o infectologista Julio Croda, coordenador do estudo que vai avaliar a efetividade (eficácia em vida real) do imunizante em Dourados (MS).

Por outro lado, a proteção para o sorotipo 3 foi abaixo do limite de eficácia de 50% (48,9%, com intervalo de 27,2%-64,1%) e, para o sorotipo 4, foi inconclusivo.

Este último ponto preocupa os especialistas, especialmente pela possibilidade de uma epidemia dos sorotipos 3 e 4 no país este ano.

"Há pouca evidência de que a vacina não aumenta as chances de casos graves em pessoas que nunca tiveram a dengue; se isso ocorrer e houver uma epidemia de dengue 3 ou 4, implementar a vacina na população geral pode ser arriscado", avalia Leonardo Bastos, coordenador do boletim InfoDengue da Fiocruz.

Uma análise exploratória feita ao longo de 54 meses após a administração da segunda dose avaliou ainda a eficácia do imunizante em associação ao sorotipo e exposição prévia ao vírus. Entre aqueles que já haviam sido expostos à dengue, a eficácia para o tipo 1 foi de 56,1%; para o tipo 2, de 80,4%; no caso do tipo 3, o registrado foi 52,3%; e o tipo 4, foi de 70,6%.

Já entre soronegativos, ou seja, aqueles que não tiveram contato prévio com o vírus e a maior parte do público-alvo da campanha de vacinação, a eficácia foi de 45,4% para o tipo 1 e 88,1% para o sorotipo 2. Neste caso, os dados sugerem ausência se eficácia contra o sorotipo 3, e indicam que não foi possível avaliar o tipo 4 devido a baixa quantidade de casos.

Quais os possíveis riscos associados?

Como todo fármaco, a vacina possui efeitos colaterais esperados, como dor ou vermelhidão no local da injeção, dores de cabeça e musculares, mal-estar generalizado e fraqueza. Cerca de 10% dos vacinados podem apresentar febre. Os efeitos colaterais são, em geral, leves a moderados, e podem desaparecer em poucos dias.

Um efeito que pode surgir ao aplicar a vacina e preocupa cientistas é a ocorrência de uma reação chamada ADE (aumento dependente de anticorpo, na sigla em inglês). Isto ocorre porque a vacina induz a produção de anticorpos ligados aos diferentes sorotipos, mas ela não é igual para cada um deles. Assim, no momento de uma infecção por um dos tipos do vírus, em vez de combatê-lo, os anticorpos podem ajudar a infecção do vírus nas células, causando um quadro similar ao de dengue hemorrágica –que pode ocorrer ao contrair a doença pela segunda vez.

"Se persiste uma possibilidade razoável de infecção entre os vacinados [pela falta de proteção contra os sorotipos 3 e 4], há o temor de que possa ocorrer a mesma coisa que houve com a vacina da Sanofi, ou seja, um aumento do risco de agravamento entre pessoas vacinadas que ficam doentes", explica o sanitarista e pesquisador da Fiocruz, Claudio Maierovitch.

O pesquisador se refere ao caso que ocorreu com a vacina Dengvaxia, da Sanofi, em 2016. O imunizante provocou reações adversas em crianças nas Filipinas após uma infecção pelo sorotipo 2, levando-as até a hospitalização. Isso levou à revogação da aprovação da vacina no país.

Para Maurício Nogueira, virologista e professor da Faculdade de Medicina de Rio Preto, não há até o momento dados suficientes para ter certeza que isso não deve ocorrer com a Qdenga. "Inclusive, membros da SBMT [Sociedade Brasileira de Medicina Tropical] se reuniram para avaliar [a incorporação no SUS] e chegamos à conclusão que não deveria ocorrer neste momento, justamente pela ausência desses dados sobre ADE", diz.

Há, também, preocupações sobre a vacinação de crianças abaixo dos seis anos de idade. "Crianças muito novas, que não tiveram ainda uma infecção prévia por dengue, talvez seria melhor conduzir estudos antes da imunização em larga escala [das crianças]", afirma Mauro Martins Teixeira, professor de bioquímica e imunologia na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Na recomendação do grupo de assessoramento (Sage, em inglês) da OMS (Organização Mundial da Saúde), o órgão restringiu a aplicação do imunizante para crianças e adolescentes de 6 a 16 anos, antes do seu contato endêmico com a doença.

A Takeda disse à Folha que após um estudo de mais de quatro anos de seguimento, o imunizante não apresentou nenhum risco de segurança ou agravamento de doença associado à vacinação, independentemente de exposição prévia ao vírus.

"Especificamente em relação à ADE, os estudos clínicos realizados até o momento não sugerem risco de agravamento da doença associado à Qdenga, mesmo na ausência de eficácia demonstrada contra o sorotipo 3 em soronegativos. Referente ao sorotipo 4 nesta mesma população, não houve casos suficientes que permitissem a avaliação de eficácia."

Questionada sobre os possíveis dados de reação ADE, a Anvisa informou que a Qdenga demonstrou ser eficaz na prevenção da febre causada pela dengue em crianças e adolescentes nos 12 meses seguintes à segunda injeção. Já a pasta da Saúde disse que não há evidências, até o momento, de ocorrência do efeito adverso ADE em pessoas que tenham utilizado o imunizante.

Em quem a vacina deve ser aplicada?

A vacina recebeu aprovação para pessoas de 4 a 60 anos. O Ministério da Saúde definiu, até o momento, que uma faixa etária entre 6 e 16 anos será priorizada no plano de vacinação.

Com as doses disponibilizadas à pasta, cerca de 2,5 milhões de pessoas serão vacinadas, o que corresponde a 1,1% da população brasileira.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto afirmava que a vacina é utilizada via intramuscular; ela é subcutânea.

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