Descrição de chapéu

Seleção mostra que aceitar é o início para a transformação

Vitória do Brasil contra a Alemanha foi magra, porém fundamental

Milly Lacombe
São Paulo

"Amor Fati" é uma expressão em latim que, em tradução livre, quer dizer: amor pelo destino. Amor, na verdade, pelo que a vida oferece; a completa aceitação de sua beleza mas também de seu horror, o total acolhimento a tudo o que for delirante e a tudo o que for repugnante.

A importância desse estado de "amor fati" diante da existência diz respeito a ser capaz de seguir a despeito do sofrimento e da tristeza, condições tão comuns à experiência humana. Mas, talvez mais do que isso, diz respeito a aceitar para poder superar. Vale para tudo, e como o futebol é parte das delícias e das dores coletivas, vale também para o jogo.

Mas aceitar os 7 a 1 que a Alemanha nos impôs no dia 8 de julho de 2014 não quer dizer reagir passivamente à humilhante derrota. Assim como na vida, aceitar a derrota é o ponto de partida para um movimento de transformação. E a seleção brasileira parece ter feito esse movimento. A vitória dessa terça-feira contra a Alemanha em Berlim por 1 a 0 foi magrinha mas foi fundamental para mostrar que aprendemos.

Fundamental porque algumas coisas parecem ter ficado para trás. Não estamos mais esmurrando o peito como animais em fúria quando soa o hino nacional. Não estamos mais fazendo faltas desnecessárias e covardes no adversário.

Não estamos mais teatralizando faltas bobas ou reagindo histericamente a cada marcação do juiz a favor do rival, e nossos zagueiros não saem mais desembestados para o ataque a fim de tentar transparecer raça.

Somos, outra vez, um time. Um time que tem obsessão pela posse de bola, que perde a bola e imediatamente parte para recuperá-la seja onde for; um time com a cara de seu treinador.

Havia um outro treinador gaúcho que quando era perguntado como o seu time jogaria dizia: quando estivermos com a bola vamos atacar; quando estivermos sem vamos defender. O nome dele era Ênio Andrade (1928-1997). O time do gaúcho Tite é mais ou menos assim: ataca com a bola, e sem a bola passa a ser formado por 10 maníacos-obssessivos que batalham pela recuperação dela.

É bonito de ver. Não é a mais tal poesia como um dia sugeriu o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, comparando nosso futebol à prosa do futebol europeu, mas é agora pelo menos uma prosa bem escrita. Não há mais dribles ——Douglas Costa aplicou um e foi isso o que vimos em matéria de samba durante os 90 minutos, não há mais ousadia, não há mais irreverência. Mas há correção, posicionamento e obediência tática.

Se já foi melhor, também sabemos que já foi pior. Já foi a máquina de 1970 e já foi a burocracia de 2002; já foi a letargia de 2006 e já foi a arrogância de 2014. Já foi arte vitoriosa, arte derrotada, tédio vitorioso e tédio humilhado. Talvez tenhamos encontrado um meio termo. Numa sociedade que supervaloriza vencedores em detrimento da experiência artística é natural que tenhamos optado por esse caminho.

Resta torcer para que um dia nos reencontremos com o drible, com a alegria, com a vibração e com o rebolado, esses fundamentos tão nossos e que um dia fizeram torcedores e torcedoras do mundo inteiro se curvar em êxtase e aplaudir o que os fazíamos sentir. Viver é se transformar; então, quem sabe? Até lá, "amor fati".

 MILLY LOCOMBE é escritora e colunista  das revistas “Trip” e “TPM”. Publicou o livro “O Ano em que Morri em Nova York” (ed. Planeta)

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