Descrição de chapéu Copa do Mundo

Boates de Moscou viram refúgio de homossexuais contra hostilidade oficial

Medida do governo cerceia liberdade de expressão e torna ilegal ativismo gay

Silas Martí
Moscou

Todas as noites, homens que gostam de homens descem uma escadaria na lateral de um prédio no centro de Moscou. Não mais que dez degraus levam a uma floricultura aberta 24 horas nesse porão, mas o que importa está atrás dos arranjos de rosas e lírios.

Essas plantas amontoadas em estantes metálicas sob luzes frias emolduram um bar na penumbra, onde um rapaz com uma camiseta coberta de lantejoulas prepara os drinques da festa sem desgrudar seus olhos da única entrada.

 

Um vigia também faz rondas pela boate, e câmeras de segurança mostram todos os cantos do lugar num monitor atrás do bar. O ar clínico dessas imagens contrasta com os anúncios ultracoloridos dos shows das drag queens Stella Diva e Penelope Galogen passando em looping noutra TV.

Num país onde casais gays não podem andar de mãos dadas nem se beijar nas ruas, as entradas de boates como a do Nashe Cafe, reduto clássico da clientela homossexual moscovita, separam dois mundos —o do asfalto lá fora onde tudo é proibido e o da escuridão da festa onde a liberdade dura só até os primeiros raios de sol.

Há cinco anos, o governo da Rússia aprovou uma polêmica lei banindo o que entende por “propaganda homossexual”.

Sob o pretexto de evitar expor crianças a manifestações de carinho entre pessoas do mesmo sexo, a medida acabou jogando na ilegalidade todo o ativismo gay e cerceando a liberdade de expressão dos homossexuais, cada vez mais alvos de episódios de violência.

Esse quadro de tensão vem se agravando nos últimos anos e está sob os holofotes na Copa. Embaixadas e governos, entre eles o brasileiro, alertaram torcedores, lembrando que as demonstrações homoafetivas podem despertar reação violenta na Rússia.

Os gays moscovitas sabem disso mais do que ninguém. Mas não deixam de encher bares e boates para dançar, ver shows de drag e até transar em quartos escuros, como fariam em qualquer outra grande cidade de país mais liberal.

“Não é ilegal ser gay, mas a lei da propaganda tornou a nossa vida supercontrolada”, disse Iaroslav Volovod, jovem que dançava com outros rapazes no Mono, outra balada moscovita. “Passaram a pedir documentos na entrada das boates, e a polícia agora faz blitze nos bares para checar se todos são maiores de idade.”

Volovod, que trabalha num museu de arte de Moscou, não esconde sua orientação sexual dos amigos, mas continua no armário para a família, algo bastante comum na Rússia, onde a vida gay se restringe às baladas e festas fechadas.

As drag queens Kalista Black e Lakistore, no clube Central Station, em Moscou
As drag queens Kalista Black e Lakistore, no clube Central Station, em Moscou - Silas Martí / Folhapress

Mesmo os casais homossexuais moscovitas ou homens que acabam de se conhecer numa festa evitam ser vistos juntos em público e tomam precauções como pegar táxis separados na saída das boates.

“Há uma fobia generalizada da população em relação à homossexualidade. Eles se sentem nervosos com a ideia de uma sociedade gay”, afirma o antropólogo Andrey Misiano. “Chega a ser algo quase biológico, bem enraizado mesmo.”

Na opinião dele, a origem desse sentimento, “uma coisa bastante russa”, é a memória dos gulags, campos de trabalho forçado da era soviética, que martelaram no imaginário popular a ideia de que um homem só transa com outro homem em rituais de humilhação e subjugação no cárcere.

“Existe uma cultura da cadeia ainda muito viva”, diz Misiano. “Nosso léxico nas ruas está bem ligado a isso. Quando querem agredir, dizem que vão foder você, não só bater.”

O medo de confrontos, aliás, faz todo segurança de boate gay em Moscou alertar quem passa pela porta para o fato de que aquele é um lugar para homossexuais.

Todas essas baladas, a exemplo do Nashe Cafe, que se disfarça de floricultura, buscam manter a máxima discrição. O Mono, no terceiro andar de um prédio a poucas quadras do Kremlin, não tem nenhum letreiro na porta, e a entrada do Boyz, famoso pelos shows de drag, fica num beco escuro.

Maior clube gay de Moscou, o Central Station, protegido por portões metálicos cegos, até se mudou de endereço depois de sofrer várias ameaças.

Mas, do lado de dentro, esses espaços se esforçam para construir um universo muito mais lúdico. No palco emoldurado por uma grossa cortina de cetim vermelho, as drag queens do Boyz fazem apresentações histéricas para o delírio dos meninos ali, que tiram selfies com elas na saída.

“Não somos tão fabulosas quanto poderíamos ser, mas estamos chegando lá”, dizia Skinny Jenny, uma drag com um vestido de plástico bolha, minutos depois de seu show.

“Vivemos essa situação bem nervosa aqui, mas tento não ter medo porque ser drag, para mim, é como estar no teatro. Aqui sou a Skinny Jenny e lá fora sou só um menino que se veste de menina na balada.”

O fato de não poder sair na rua de vestido e peruca, no entanto, dificulta a vida da drag moscovita. Quando elas vão de um show para outro numa mesma noite, todo o look precisa ser desmontado e refeito.

É mais um malabarismo logístico numa cidade caótica. “Um amigo um dia teve de andar na rua vestido de Whitney Houston. Todo o mundo tinha os olhos grudados nele”, diz a drag. “Mas pelo menos a polícia está mais preocupada com ladrões de carteira e celular do que com nossos looks.”

Isso não quer dizer que não existe censura mesmo no oásis de liberdade das boates gays. A Boyz, por exemplo, tem câmeras até nos banheiros, para evitar que garotos entrem juntos nas cabines.

No Central Station, os seguranças vigiam todo o movimento. Ninguém, no entanto, parece intimidado. Todos dançam até os suspiros finais da noite, como se aquela fosse a última de suas vidas, e só voltam para casa quando o sol já tinge de rosa o céu de Moscou.

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