Bastaram 56 segundos para que o uruguaio José Batista entrasse para a história das Copas do Mundo. Após falta dura em um duelo contra a Escócia, viu o árbitro francês Joel Quiniou levantar o cartão vermelho mais rápido de todos os Mundiais.
Em 1986, no México, essa era a imagem que o Uruguai passava ao mundo. A de um time violento e que não pouparia as botinadas para conseguir seus resultados.
A imagem do vermelho de Batista é o oposto do que a seleção uruguaia mostra hoje no Mundial da Rússia, sem deixar a característica "garra charrúa" de lado. No torneio, a equipe levou somente um cartão amarelo, com Rodrigo Bentancur. É a mais disciplinada da Copa nesse quesito.
A mudança de perfil está na cultura inculcada neste Uruguai, processo iniciado há 12 anos por Óscar Washington Tabárez, 71, o técnico da seleção, a quem os jogadores chamam de "Maestro" (professor, em espanhol).
Não é à toa. A disciplina nada mais é do que o resultado de um processo educacional do time que, com o tempo, viu florescer as melhores práticas. Nada estranho para quem um dia comandou uma sala de aula, acreditando no poder do ensino para que as crianças pudessem, no futuro, fazer a diferença.
Depois de uma carreira como zagueiro em clubes modestos de Montevidéu e de uma breve passagem pelo México, Tabárez precisou pendurar as chuteiras aos 32 anos, em 1979. Os joelhos já não aguentavam mais.
O sucesso no futebol era desejo de vida, mas também sobrevivência. Como ganhava pouco no início da carreira de técnico, no time do Bella Vista, completava a renda como professor primário.
Em 1983, dava aula na Escola Nº 30, pública, localizada no bairro Cerro, na capital uruguaia, quando recebeu um chamado de última hora para comandar a seleção nos Jogos Pan-Americanos. Voltou com o título, e voltou a dar aulas.
Em seu retorno à escola, viu na lousa a frase: "Uruguai campeão". Não só pela conquista, mas pelo trato com os alunos e as pessoas do bairro, ganhou a simpatia das ruas que cercam a Escola Nº 30.
Uma senhora vizinha ao colégio se surpreende com reportagem da Folha. Quando ouve que o assunto é o Maestro Tabárez, solta um "Ah, o melhor do mundo!" E dona Elza se põe a falar sobre a forma educada como ele sempre se referiu a todos pela região.
Em frente à escola, fechada para o período de férias, três crianças caminham com roupas de futebol. Dizem que estudam ali. A questão inevitável é se sabem que o técnico da seleção já deu aulas nas mesmas salas que frequentam.
"Sim!", respondem entusiasmados e em sincronia Franco, Nazareno e Santiago.
O trio acredita que o Uruguai pode ser de novo campeão do mundo e não há França, Brasil ou Inglaterra que possam demovê-los dessa ideia.
Dizem, claro, mais com euforia do que com a razão, mas é justamente isso o que Tabárez e seu processo à frente do time gera. Entusiasmo.
Conta o craque uruguaio Diego Forlán, no prefácio de um livro sobre o técnico, que as preleções de Tabárez sempre consistiram em poucas palavras. Mas a mensagem principal era o compromisso com a camisa e com o companheiro, para que um só não fizesse nada que prejudicasse o todo.
"Entraremos em campo com 11 e sairemos de campo com 11!", dizia o Maestro segundo Forlán, eleito melhor jogador do Mundial de 2010.
"[Tabárez] administra a equipe com muita simplicidade e sendo claro com o que quer", diz à Folha Álvaro "Tata" González, jogador do Nacional (URU) que participou da campanha nas eliminatórias que classificou o Uruguai para a Copa na África do Sul.
Sem os famigerados pontapés de outrora e com um sentido enorme de pertencimento ao país que representam, a equipe foi semifinalista da Copa de 2010, foi às oitavas em 2014 após vencer Itália e Inglaterra e está nas quartas.
Em meio a esse processo, conquistou uma Copa América, em 2011, dando à sala de troféus celeste uma taça com um brilho que há muito não se via nas poeirentas prateleiras da federação de futebol local.
O último título havia sido em 1995, também uma Copa América, no próprio país.
O escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de "Futebol ao Sol e à Sombra", disse certa vez que a seleção de Tabárez findou "um período vergonhoso, o da divinização e da demagogia da violência, essa ideia de que o futebol uruguaio deveria ser salvo na base da porrada".
Este Uruguai educado regido pelo Maestro recuperou as melhores lembranças que seus torcedores tiveram do selecionado nacional e criou em todos a sensação de que se pode alcançar o que se quer com o melhor exemplo.
E é assim que Tabárez espera que a seleção continue após a sua saída da equipe.
O técnico mais velho desta Copa do Mundo, aos 71 anos, pode estar em seu último torneio pela equipe. Segundo a imprensa uruguaia, ele sofre da Síndrome de Guillain-Barré, doença autoimune que ataca o sistema nervoso, interferindo na condução de estímulos até os músculos.
Por conta disso, Tabárez se move pelo centro de treinamento uruguaio com um carrinho e comanda a seleção da área técnica com uma muleta, visivelmente com dificuldades para caminhar.
Uma mudança no comando do time é dada como certa. Mesmo que o resultado faça com que as lousas de várias escolas pelo país repitam com o giz dos professores os dizeres daquele quadro-negro em 1983: "Uruguai campeão".
Óscar Tabárez, 71
Uruguaio de Montevidéu, defendeu clubes modestos quando era defensor. Em 1979, aos 32 anos, se aposentou como jogador do Bella Vista e no ano seguinte assumiu o comando do time. Foi técnico do Peñarol, Boca Juniors, Milan e Cagliari, entre outros. Desde 2006 dirige o Uruguai, seleção que já havia comandado de 1988 a 1990
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