São Paulo incansável jogou quase 100 partidas para ser bicampeão mundial

Preparador físico lembra planejamento para partida, que teve até contrabando de carne

Müller grita na cara de Costacurta e comemora o terceiro gol do São Paulo sobre o Milan, em Tóquio
Müller grita na cara de Costacurta e comemora o terceiro gol do São Paulo sobre o Milan, em Tóquio - Reprodução
João Gabriel
São Paulo

Num 12 de dezembro há 25 anos o São Paulo entrava em campo no Estádio Nacional de Tóquio para enfrentar o Milan na final do Mundial de Clubes, sob um “sol de cinco horas da tarde”, como lembra o goleiro Zetti. Não bastava o calor, era também a 97ª partida da equipe naquele ano.

O segredo para ter um time 100% em forma após tantos jogos, além de um elenco recheado, era uma revolução que acontecia nos bastidores do clube desde a chegada do técnico Telê Santana e do preparador físico Moraci Sant’anna, no final de 1990.

Com décadas de trabalho conjunto, os dois se uniram ao fisiologista Turíbio Leite de Barros e iniciaram o projeto de um novo modelo de preparação física no São Paulo.

“A gente tinha um mini laboratório que o Turíbio já tocava lá”, contou Moraci. “A partir de 1991, a gente começou um planejamento de fazer a avaliação não só no início da temporada e no campo [como era o comum], mas dar continuidade e fazer reavaliações usando o laboratório”.

Segundo Moraci, isso foi um “divisor de águas” entre preparação empírica e científica, possibilitando a criação de curvas de progressão física e fisiológica dos atletas. O método deu resultados. O que fez com que o então presidente do clube, José Eduardo Mesquita Pimenta, concordasse com a construção de um laboratório dentro do próprio centro de treinamentos da Barra Funda, afinando a relação entre os exames laboratoriais e os treinos no gramado.

“Aí a gente começou a ganhar tudo. Isso deu uma repercussão grande na época, tanto que o Palmeiras pede para o Turíbio a indicação de um fisiologista. Logo em seguida, o Corinthians também pede. Eles sentiram que estavam ficando para trás”, afirma Moraci.

Mas para chegar bem ao 97º e mais importante jogo da temporada, o elenco precisaria encarar 25 horas de vôo entre São Paulo e Tóquio, com escala em Los Angeles.

Campeão mundial no ano anterior, a equipe repetiu o planejamento da viagem nos mínimos detalhes, incluindo o cardápio, escala de treinamentos, um “complô” com os funcionários do hotel e o contrabando de carnes escondidas na bagagem. Moraci foi quem organizou a logística.

Ele conta que pediu ao roupeiro do time que já deixasse uma sacola com tudo pronto para a equipe treinar assim que desembarcasse. Ao chegar no hotel, foi de porta em porta tirando os jogadores dos quartos, os levou até uma praça e deu início aos exercícios para “tirar o avião do corpo”.

“Então começou a chuviscar. Eles queriam ir embora, eu não deixei, mandei alongar. Ficamos alongando, já tinha dado meia hora e a chuva engrossou tanto que o pessoal começou a correr, não teve jeito”, lembra Moraci.

O relógio já passava das 18h e o jantar estava marcado para sair às 19h.

“Mas lá na cozinha eu também combinei com cozinheiro, garçom e todo mundo de fazer assim: eles traziam o pãozinho e demoravam um pouco; traziam a salada, espera; depois traz os pratos quentes”, contou o preparador físico, que queria atrasar o máximo possível a hora de dormir para ajustar o fuso horário.

Parte indispensável da alimentação pensada pela nutricionista Patricia Bertolucci era a carne. Para economizar dinheiro, o São Paulo resolveu levar filés congelados direto do Brasil, porque em Tóquio seria difícil conseguir os ingredientes da alimentação cotidiana dos atletas.

“Só que para entrar lá [no Japão], nós enfiamos os isopores com as carnes em sacos de roupa e forramos tudo com chuteiras em volta e por cima, para disfarçar e não ficar preso na alfândega. Fizemos isso as duas vezes, em 92 e 93”, confessou Moraci, rindo.

O preparador físico Moraci Sant'Anna [à dir] conversa com o Muller durante treino no Centro de Treinamento da Barra Funda.
O preparador físico Moraci Sant'Anna [à dir] conversa com o Muller durante treino no Centro de Treinamento da Barra Funda. - Marcelo Soubhia13.jul.96/Folhapress

O intervalo de sete dias que o São Paulo teve para se preparar para a final foi a primeira vez no ano inteiro que a equipe ficou uma semana sem nenhum compromisso.

Nada disso serviria se o resultado em campo não fosse positivo. E o adversário era o temido Milan de Fabio Capello, que mesmo não tendo sido campeão da Champions League (vencedor, o Olympique de Marselhe foi desclassificado por se envolver em um esquema de combinação de resultados), era um dos times mais temidos da Europa.

“No primeiro ano [1992], foi tudo uma novidade, não queríamos nem saber quem era o adversário”, lembra o goleiro Zetti. “Nós pegamos o Milan já numa cobrança maior que contra o Barcelona. O Barcelona era novidade, contra o Milan nós éramos campeões do mundo”.

“Nós tínhamos muitas fitas VHS com jogos do Milan, nós vimos tudo, ele [Telê] passava na preleção. E tinha que acompanhar, não dava pra rebobinar a fita”, continua.

O time de Telê Santana aliava a juventude de jogadores como Cafu, que então tinha 23 anos, com a experiência de craques como Toninho Cerezo, que mesmo com 38 “parecia uma criança, 90 minutos para ele era pouco”, lembra Moraci.

O jogo atendeu às expectativas de quem esperava um grande confronto. Aos 19 minutos, Palinha abriu o placar para o São Paulo e o Milan só conseguiu empatar aos 3 da segunda etapa. Foi de Cerezo o segundo gol da equipe brasileira e de Papin o novo empate italiano.

“Eu tinha uma preocupação muito grande que era o sol, tanto que eu usei uma pasta no olho para evitar o reflexo. Quando eu tomo o segundo gol, de cabeça, estou com a mão no olho, tentando achar a bola", contra Zetti.

"Normalmente eu sairia pra fazer a defesa, mas eu não enxerguei, não vi. O sol estava de frente, bem na reta do goleiro, sol baixo, ao meio dia era como um sol de cinco horas da tarde. Eu usava boné, mas não adiantou”, completa.

Hoje comentarista de goleiros nos canais ESPN, o ex-atleta acredita que, se assistisse ao lance durante um programa, teria interpretado como falha do goleiro.

“Acho que ia criticar esse gol que a bola subiu e eu não saí nela”, diz, dando risadas.

Faltavam 11 minutos para o fim do 97º jogo do São Paulo no ano e uma possível prorrogação poderia ser perigosa para o time paulista.

Aos 41 minutos, porém, um lance de sorte gerou uma das comemorações mais emblemáticas dos Mundiais. Cerezo lançou Muller, que ganhou na corrida de Baresi, mas quem chegou primeiro na bola foi o goleiro Rossi.

“O Rossi foi muito forte na bola para fazer a defesa. Achou que o Muller ia dividir. Ele não conseguiu segurar, acabou dando um toque na bola”, diz Zetti. A bola rebateu no calcanhar de Muller e entrou no gol.

“Esse gol é para você, palhaço!” gritou o atacante para o italiano Costacurta, em tom de desabafo. Anos depois, Muller confessaria que não teve a intenção de finalizar.

Momento em que bola rebate do travessão e volta na direção de Zetti, na partida contra o Milan no Mundial de Clubes de 1993.
Momento em que bola rebate do travessão e volta na direção de Zetti, na partida contra o Milan no Mundial de Clubes de 1993. - Jorge Araújo-12.dez.93/Folhapress

Os 97 jogos disputados, feito que igualou o Santos de Pelé, seriam um final perfeito antes das férias tão esperadas pelos jogadores. Não foi o que aconteceu para oito são-paulinos.

Zetti, Cafu, Ronaldão, Dinho, Válber, Leonardo, Palinha e Muller foram ainda convocados por Carlos Alberto Parreira para servir a seleção brasileira no amistoso contra o México, quatro dias depois.

Muller teve que adiar sua lua de mel. Cafu e Leonardo sequer entraram em campo na partida que terminou 1 a 0 para o Brasil, com gol de cabeça marcado por Rivaldo

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