Fuga de Wlamir Marques marcou 1º título mundial do basquete brasileiro

Ícone do esporte relembra feitos da geração bicampeã e vê falta de cuidado com memória

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São Paulo

Um grupo talentoso submetido a longos e exaustivos treinamentos levou o Brasil ao topo do basquete pela primeira vez há 60 anos.

É assim que Wlamir Marques, 81, ícone daquela geração, relembra em entrevista à Folha a conquista obtida em 31 de janeiro de 1959, com uma vitória sobre o Chile por 73 a 49 em Santiago.

"É uma coisa que não sai da minha cabeça, é uma imagem que permanece e que eu jamais vou esquecer", diz o ex-jogador, apelidado durante a carreira de diabo loiro.

A União Soviética, principal adversária naquela competição e que derrotou a seleção brasileira duas vezes, havia sido punida pela recusa em enfrentar Formosa (atualmente Taiwan). Os soviéticos não reconheciam os dissidentes da China como nação independente.

A punição abriu espaço para a conquista brasileira, que se repetiria em 1963, dessa vez no Rio de Janeiro, com uma vitória sobre os EUA.

Em 1959, Wlamir dividia as atenções com Amaury Pasos. Rosa Branca e Algodão também se destacavam na equipe treinada por Togo Renan Soares, o Kanela.

Hoje comentarista dos canais ESPN, Wlamir recorda o confinamento de cinco meses antes da disputa no Chile e sua fuga da concentração para acompanhar o nascimento do filho, o que quase provocou seu corte do elenco.

Seis décadas depois, ele critica episódios que refletem, na sua opinião, pouco cuidado com a memória do esporte no Brasil.

Em novembro do ano passado, após a morte do campeão mundial Waldir Boccardo, Wlamir comentava uma partida do NBB no ginásio do Paulistano, em São Paulo, e precisou alertar a arbitragem para que fosse respeitado um minuto de silêncio.

 

Preparação pesada
O trabalho começou em agosto de 1958. Nós ficamos cinco meses treinando alojados em um quartel militar, nunca tivemos mordomia. Tínhamos sido vice-campeões do mundo em 1954, então estávamos credenciados a ganhar. Não foi acidental, foi muito trabalho, sob o comando de um técnico que soube dirigir muito bem todos nós. Mas não podemos dizer que para o Brasil voltar a ser campeão do mundo tem que fazer o que nós fizemos. Isso é impossível. Hoje não há mais como prender os jogadores por cinco meses.

Geração bicampeã
No Mundial de 1954 eu tinha 17 anos, e o Amaury, 18. Nós fazíamos na seleção coisas que os jogadores daquela época não faziam, como enterrar a bola. Se você olhar no retrospecto, foi um acidente ter acontecido tudo isso. Ter surgido numa mesma época talentos diferentes, que se completavam com o excesso de treinamento. Foi uma geração maravilhosa. À medida que uns iam deixando a seleção, apareciam outros para completar.

Muito se comenta que fomos campeões do mundo, mas pouco se fala que fomos duas vezes vice-campeões, em 1954 e 1970. Vice no Brasil é o primeiro dos últimos, não é considerado, mas eu levo isso como um grande feito. Imagina se hoje o Brasil conseguisse ser vice-campeão do mundo, os jogadores seriam recebidos em carro aberto.

Wlamir Marques durante jogo contra o Chile no Mundial de basquete de 1959
Wlamir Marques durante jogo contra o Chile no Mundial de basquete de 1959 - Folhapress

Fuga da concentração
Nós estávamos treinando em Volta Redonda (RJ) e seríamos dispensados para o Natal. No dia 20 de dezembro fiz um pedido para que o Kanela me dispensasse um pouco antes, porque minha esposa estava para dar à luz em Piracicaba (SP). Ele disse que não, que eu precisava treinar. Não gostei da resposta e disse para o Amaury que ia embora. Nosso quarto dava para rua, então pulei a janela de madrugada e fui para rodoviária, peguei um ônibus para São Paulo e de lá para Piracicaba [cerca de 500 km ao todo].

Quando o Kanela soube, na hora ele me cortou. Fui avisado e falei “bom, não posso fazer nada”. Meu filho nasceu na madrugada de 21 para 22, então não me arrependo. No dia 24 recebi um comunicado, o Kanela pedia que eu me reapresentasse. Ele voltou atrás, e eu voltei no dia 26 para o Rio. Não tivemos nenhum tipo de conversa, voltei como se não tivesse acontecido nada. Foi um ato de rebeldia, concordo que merecia ter sido cortado, mas foi tudo de cabeça pensada. Não me arrependo.

Depois que ganhamos o Mundial e estávamos voltando ao Brasil, o Kanela sentou ao meu lado no avião e disse: “alemãozinho, quase que nós jogamos tudo isso fora”.

Morte e esquecimento
Foi um absurdo [o esquecimento da homenagem a Waldir Boccardo]. Todo o país teria que prestar um minuto de silêncio, até em jogo de futebol. Eu me lembro que antes de começar o jogo pedi autorização para conversar com a arbitragem e falei “olha, vamos prestar um minuto de silêncio para o Boccardo, ele é um campeão do mundo”. Como não daria tempo no começo, prestaram no intervalo. Isso foi uma omissão grave. Agora faleceu o [Antonio Salvador] Sucar [campeão em 1963]. Foi a mesma coisa, muito pouco comentado e homenageado.

Queda de popularidade
Houve má administração da CBB [Confederação Brasileira de Basquete]. Pessoas usufruíram do poder para proveito próprio, e tivemos queda de renovação. O trabalho de base não foi feito à altura, e o basquetebol evoluiu no mundo a ponto de o Brasil não ser mais uma grande força.

Como a gente não tinha mais resultado, os clubes começaram a perder força. Não tinham recurso para manter os melhores jogadores, e a maioria saiu do país para jogar na NBA e na Europa. Aqui ficaram jogadores esforçados, dedicados, mas não conseguimos resultado nenhum. Ficamos de 1996 até 2012 sem participar da Olimpíada.

Houve uma queda total até no interesse pela modalidade. Enquanto o basquetebol brasileiro não conseguir um resultado satisfatório, nós vamos ficar à míngua, como está a CBB, coitada. Eu apoio o Guy [Peixoto, atual presidente da entidade], meu amigo, mas ele tem uma dificuldade enorme de conseguir patrocínio por não ter nada para apresentar como retorno.

Diferentemente do sucesso do voleibol, que pode não ter uma competição interna tão maravilhosa, mas tem resultados internacionais, que é o que interessa. Estamos esperando um fenômeno, que apareça um jogador que possa suplantar isso, mas infelizmente não tem surgido.

Oscar Schmidt
Criou-se um ambiente ruim entre mim e o Oscar quando me perguntaram se ele jogaria na nossa época. Eu falei que não, mas não esperaram eu terminar de falar e já começaram a me criticar. Ele não jogaria da forma como terminou [a carreira], até porque nem existia linha de três pontos. Com 2,04 m de altura ele seria um pivô, jogaria de costas para a cesta e pegaria todos os rebotes. Seria uma forma diferente de jogar, mas lógico que seria titular absoluto.

NBA como referência
No país nós estamos querendo jogar como se joga na NBA, com muitos arremessos de três pontos, mas não temos talentos individuais para isso, então fica uma pelada, com muitos erros. Não só o Brasil, mas nenhum país do mundo pode usar a NBA de exemplo. Ninguém tem a qualidade individual dos americanos, além de eles levarem para lá os melhores dos outros países.

Wlamir Marques em 2013, quando foi comemorado os 50 anos do bicampeonato mundial
Wlamir Marques em 2013, quando foi comemorado os 50 anos do bicampeonato mundial - Zé Carlos Barretta - 24.mai.13/Folhapress

Wlamir Marques, 81
Ex-jogador e ex-técnico, é um dos maiores nomes da história do basquete. Foi bicampeão mundial em 1959 e 1963 e medalhista olímpico de bronze em 1960 (Roma) e 1964 (Tóquio). Como atleta, seus principais clubes foram XV de Piracicaba e Corinthians. Hoje é comentarista dos canais ESPN.

 
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