Futebol moderno não comportaria alguém tão denso quanto Heleno

Não há como comparar o controverso jogador, nascido há cem anos, com safra atual

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Marcos Eduardo Neves

Ele morreu jovem, mas se negou a partir. Mais vivo do que nunca –aliás, tão vivo quanto sempre, Heleno de Freitas completa nesta quarta (12) 100 anos de idade.

Esguio, esbelto, com gomalina nos cabelos, segue o mesmo incorrigível galã. Melhorou muito, principalmente em relação à última impressão deixada: a daquela figura esquálida e deformada, que faleceu de forma melancólica em um pacato sanatório de Barbacena, aos 39 anos de idade.

Heleno de Freitas foi ídolo do Botafogo na década de 1940
Heleno de Freitas foi ídolo do Botafogo na década de 1940 - Reprodução

Sempre que há chance, as novas gerações, ávidas pelos personagens lendários do esporte, perguntam-me se esse ídolo, cuja mitologia em torno de si ultrapassa a barreira do tempo, teria vez no futebol “moderno” de hoje.

É difícil bater martelo no campo hipotético, mas a resposta tem tudo para ser negativa. Não que seu estilo não coubesse no futebol atual. Simplesmente, o futebol atual não comporta alguém tão denso e intenso feito Heleno de Freitas.

Para começo de conversa, explicar com quem ele se parece é tarefa hercúlea. Não há como compará-lo à atual safra de jogadores, esses bons meninos de penteados esdrúxulos e discursos pasteurizados à base do politicamente correto. Com o fim de traduzi-lo, precisaríamos reunir gerações distintas do passado e, vá lá, do presente. Caso contrário, o complexo se torna impossível.

Bem, o grande Heleno nasceu em berço esplêndido. Portanto, é de boa família, feito Kaká. Era elegante, como Zidane. Inteligente, tipo Alex. Culto, nível Tostão. Político, à Sócrates. Bonito, estilo Raí. Mulherengo, tal qual Romário. Polêmico, como Paulo Cezar Caju. Irascível, vide Edmundo. Pavio curto, feito Mário Sérgio. Cabeceador, estilo Jardel. Craque, nível Ibrahimovic. Artilheiro, tipo Cristiano Ronaldo. Vaidoso, tal qual Beckham. Matava no peito à Pelé. Autodestrutivo, feito Adriano. Doente, como Jobson. E de fim trágico, minado pelas drogas, ao pior estilo Valdiran.

Contudo, dificilmente algum jogador brasileiro de hoje estudaria em colégio tão tradicional como o São Bento –o mesmo de Jô Soares, Heitor Villa-Lobos, Paulo Francis, Franco Montoro. Mais do que isso, Heleno se formou em direito –atualmente atleta tupiniquim letrado é, no máximo, autodidata, exceção à regra.

Bebia vermute ouvindo jazz na varanda do Copacabana Palace, e nisso não dá para imaginar que aquele que seduziu de Nelson Rodrigues a Gabriel García Márquez frequentasse pagodes movidos a sertanejo universitário.

O jogador Heleno de Freitas acende um cigarro em 1951
O jogador Heleno de Freitas acende um cigarro em 1951 - Acervo UH/Folhapress

Perfeccionista, Heleno brigava em campo com os próprios companheiros –desde Renato Gaúcho x Djalminha não vemos isso nas quatro linhas. A recepção de seu casamento se deu no fechadíssimo Country Club, em Ipanema.

Vítima do seu tempo, Heleno só não foi maior porque não houve duas Copas, em virtude da Segunda Guerra Mundial. Faz pouco tempo, Grafite, Bernard e Taison foram convocados para disputar tal competição.

Todavia, o que o torna sui generis é ter morrido louco em um hospício. Simplesmente, ignorou as consequências de uma sífilis desenvolvida a olhos nus do público, durante a própria carreira, justamente porque os dirigentes e médicos de seu tempo se julgavam “menores”, inferiores socialmente perante ele, incapazes até para sugerir que se tratasse de forma séria.

Primeiro "bad boy" do futebol brasileiro, Heleno de Freitas é um dos mais controversos personagens não do esporte, mas da história nacional. Sua lenda transcende o universo dos estádios. Gênio temperamental, o atacante passou de forma devastadora pelos campos brasileiros. Fenômeno da natureza, foi ao mesmo tempo forte, encantador e terrível.

Gentleman destemperado, inflamou as trevas de sua psicose congênita, despencando do céu ao inferno na velocidade da luz. Não há mais dúvidas: o comportado futebol de hoje não tem envergadura para uma estrela cadente tão incandescente.

Heleno de Freitas (1920-1959)

Nascido em São João Nepomuceno-MG e formado em direito pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), chegou ao time principal do Botafogo em 1937. Pelo clube, atuou em 233 jogos e marcou 204 gols. Passou também por Boca Juniors (1948/49), Vasco (1949), Junior Barranquilla (1949/50), Santos (1951/52) e América-RJ (1953).

Marcos Eduardo Neves é autor da biografia “Nunca houve um homem como Heleno”, que terá sua terceira edição lançada em março pelo selo Museu da Pelada

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