Demitido há 50 anos, Saldanha deixou marca no Brasil tricampeão

Gaúcho dirigiu 'escrete de feras' nas eliminatórias e caiu antes do Mundial de 1970

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São Paulo

“Circula nas veias do João sangue e não água da bica”, observou Nelson Rodrigues. De fato fervilhava, e não era transparente, o que corria pelo corpo de João Saldanha. Era vermelho o que jorrava de seu coração alvinegro.

Nem o comunismo do amigo botafoguense, no entanto, minimizava a admiração do reacionário tricolor. Enchia os olhos míopes de Nelson a valentia da qual Saldanha não abria mão em nenhuma das muitas atividades que exercia.

Coragem não faltou quando o gaúcho assumiu o comando da seleção brasileira, em 1969. Convidado a dirigir o time nacional em tempo de ditadura militar, o militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) perguntou apenas: “É sondagem ou convite?”. Era convite. “Topo.”

João disse "topo" e já chegou com seu "escrete de feras" definido - Acervo - fev.70/Folhapress

Àquela altura, aos 52 anos, João já tinha mostrado seu talento para ser muitos. Fora líder estudantil, dono de cartório, guerrilheiro, jogador de basquete, cartola, ator...

Como técnico de futebol, recusando-se a receber salário, levara o amado Botafogo ao título carioca de 1957. Depois disso, com sua linguagem simples e sua enorme capacidade de comunicação, estabelecera-se como comentarista esportivo altamente popular e grande crítico do trabalho realizado pela CBD (Confederação Brasileira de Desportos), a atual CBF (Confederação Brasileira de Futebol).

Foi aí que surgiu o convite que não era sondagem. Com o seu “topo”, Saldanha iniciou um período à frente da seleção que durou cerca de um ano, foi encerrado há 50 e deixou uma marca indelével naquele que é tido por muitos como o maior time da história, o Brasil campeão do mundo em 1970.

Quando João chegou, a equipe verde-amarela vivia péssima fase. Eliminada da Copa de 1966 ainda na primeira fase, não dava sinais de recuperação e colecionava resultados decepcionantes, sob comando de Aymoré Moreira, no momento em que o presidente da CBD, João Havelange, decidiu fazer uma aposta inesperada.

“O Saldanha era o maior crítico da seleção. Batia todo dia, todo dia, todo dia. O Havelange, que era o capa-preta da época, o cartolão, pensou: ‘Vou chamar o João, o João vai quebrar a cara, e aí eu calo o maior crítico'”, diz André Iki Siqueira, autor do livro “João Saldanha – Uma Vida em Jogo” e codiretor do documentário “João Saldanha”.

Mas Saldanha não quebrou a cara. Ao menos não imediatamente. Ele assumiu a seleção apresentando uma papeleta com sua escalação, chamou de “feras” aqueles jogadores talentosos –então tratados como obsoletos no futebol-força, apontado como o caminho a ser seguido após o título da Inglaterra em 1966– e reconquistou a autoestima de um time bicampeão mundial.

“O futebol brasileiro estava por baixo. Falava-se sobre o novo futebol, o da Europa, o do preparo físico. Então, ele entrou e deu uma força muito grande para os jogadores, uma força psicológica, e formou um time espetacular. O Brasil tinha muito jogador bom, tinha tudo para ser um grande time, e foi o que aconteceu. Ele deu uma subida no time”, afirma Tostão, centroavante daquele “escrete de feras” e hoje colunista da Folha.

Nas eliminatórias, o sucesso foi estrondoso. Foram seis vitórias em seis partidas, com 23 gols marcados e apenas 2 sofridos. Entre esses jogos, o Brasil encarou a aclamada Inglaterra em amistoso no Maracanã, venceu por 2 a 1 com um gol inverossímil marcado por um Tostão caído no chão e se tornou favorito na luta para levar o tri –com o que seria a subsequente posse definitiva, ou quase isso, da taça Jules Rimet.

Gérson, Pelé e Tostão eram peças importantes da equipe - Acervo - ago.69/Folhapress

Aí, como afirma o biógrafo de Saldanha, dando crédito ao jornalista Juca Kfouri pela frase, “João virou um problema de Estado”. O presidente já não era Artur da Costa e Silva, que não ligava muito para futebol. Desde outubro de 1969, o país era governado por Emílio Garrastazu Médici, que frequentava o Maracanã com um radinho de pilha no ouvido e se incomodava com a possibilidade de um comunista voltar do México com o troféu.

O problema cresceu porque Saldanha fazia questão de gritar. Em uma viagem à Europa para observar potenciais adversários da Copa, deu entrevistas denunciando os abusos do regime. No México, já em 1970, no sorteio das chaves do Mundial, apareceu com um dossiê, uma pilha de documentos contrários à ditadura, e foi questionado se havia “alguma tortura no Brasil”. “Alguma? Não. Muita.”

Estava claro que ele não poderia chegar ao Mundial à frente da seleção. O próprio João demonstrava um desconforto crescente por estar na posição de treinador do Brasil enquanto seus companheiros eram torturados e assassinados.

Houve, então, um processo de desconstrução da figura de João como o líder na possível campanha do tri. Um processo do qual participou ativamente o próprio João, comprando brigas com quem cruzasse seu caminho. Até Pelé.

Além de uma discordância tática, Saldanha se meteu em uma polêmica sobre a visão do camisa 10, míope. Alguns resultados ruins em amistosos, como uma derrota para a Argentina em Porto Alegre, pioraram a situação do gaúcho. Criticado por Yustrich, técnico do Flamengo, ele apareceu armado na concentração rubro-negra para tirar satisfação.

O episódio ajudou a estabelecer a narrativa de que aquele desequilibrado não poderia ser o comandante do Brasil no México. Ele mesmo dava sinais de que não via sentido em sua presença naquele cenário, sobretudo em uma comissão técnica que tinha vários militares.

“É uma impressão minha. Ele era um comunista, na época da ditadura. Imagino que ficasse inibido. Aí, teve o episódio com o Pelé e outros episódios. Até hoje falam que o Saldanha provocou aquilo para ser mandado embora. Ele sentiu que estavam querendo derrubá-lo e também já estava incomodado”, afirma Tostão.

Tostão observava um Saldanha incomodado na seleção brasileira - Acervo/Folhapress

A lista de episódios que contribuíram para o divórcio tem ainda o famoso bate-boca com Médici, que sugeriu a convocação de Dario, o Dadá Maravilha, do Atlético-MG, e teve uma resposta no estilo João. Que o presidente escalasse seus ministérios. Do time cuidaria ele.

Assim, naquele 17 de março de 1970, Saldanha foi a uma reunião na CBD certo de qual seria o desfecho. João Havelange, que declarara dias antes que impediria “fisicamente” o treinador de sair se esse fosse seu desejo, e Antonio do Passo, dirigente que tinha o cargo de presidente da comissão técnica e também manifestara sua suposta lealdade, anunciaram a demissão.

“Sabem quando começaram a afiar a guilhotina para Saldanha? No dia mesmo em que o escolheram para técnico da seleção”, escreveu Nelson Rodrigues, em O Globo, na edição de 19 de março. “Ah, foi uma guerra suja de tantos contra um só. Guerra digna do nosso vômito”, acrescentou.

Já o técnico, também em uma coluna no jornal carioca, resumiu a situação em duas frases. “Por que eu saí é muito fácil de explicar. O que eu tenho dificuldade de explicar é por que eu entrei”, escreveu.

Mais tarde, em depoimento registrado em 1988, ele usou as palavras que evitara em 1970.

“O Havelange foi chamado, recebeu ordens e cumpriu. Fui demitido. Os motivos foram sórdidos. Fui demitido pelo governo do maior ditador e maior assassino da história do país. Arguir o desempenho técnico não podiam. Apelaram. Reagi. O lado mais fraco não ganharia aquela parada nunca”, disse.

Demitido da seleção, Saldanha voltou a trabalhar como comentarista - Acervo/Folhapress

Zagallo assumiu o time e aceitou a sugestão de Médici de convocar Dadá. Fez também alterações táticas importantes, como a entrada de Rivellino no meio-campo e o deslocamento de Piazza para a defesa, que terminaram de dar forma ao Brasil tricampeão.

Saldanha foi ao México como comentarista da TV Globo e vibrou muito com a conquista. Na transmissão da final, ele se emocionou com o gol de Carlos Alberto, que fechou o triunfo por 4 a 1 sobre a Itália e finalizou a trajetória vitoriosa iniciada pelas mãos do gaúcho.

“O time é ele. A alma do time é João Saldanha. Eu não tiro o mérito do Zagallo, que conhecia futebol, o próprio Saldanha recomendou o Zagallo. Mas o Saldanha era a alma daquele time. O Zagallo entrou e mexeu duas pedras. Agora, a alma do time, o time jogando para cima o tempo inteiro, aquilo era o Saldanha”, afirma André Iki Siqueira.

Para Roberto Sander, autor de “1970 – Enquanto o Brasil Conquistava o Tri”, a marca deixada por João foi o resgate da autoestima dos atletas.

“Houve uma grande contribuição dele, sem dúvida. Ele mesmo declarou que tinha uma missão a cumprir, que era resgatar o prestígio da seleção. E ele devolveu a confiança aos jogadores. Nesse sentido, foi muito importante a presença dele como técnico, por um ano”, diz o jornalista.

Fora do time nacional, Saldanha voltou a fazer sucesso como comentarista e trabalhou até a Copa do Mundo de 1990, contrariando recomendações médicas e viajando com insuficiência pulmonar. Aos 73 anos, ele suportou bravamente a cobertura, honrando pela última vez o apelido “João Sem Medo”, e voltou da Itália em um caixão.

“Ele não tem medo. Nada nos humilha mais do que a coragem alheia”, descreveu Nelson Rodrigues, o responsável pela criação do apelido.​

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