Atletas mães levam seus filhos para 'bolhas' esportivas dos EUA

Situação nas grandes ligas reflete responsabilidade cultural imposta às mulheres

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Molly Hensley-Clancy
The New York Times

Quando seu time de futebol voltou aos gramados, em junho, Amy Rodriguez tinha um problema familiar. Sozinha no Utah com os dois filhos, ela precisava voltar a trabalhar, mas não tinha como contratar alguém para ajudá-la a tomar conta das crianças, por causa da pandemia.

Por isso, Rodriguez fez algo que já começou a lhe parecer normal, depois de anos de esforços para equilibrar sua carreira no futebol profissional e suas responsabilidades como mãe: instalou seus dois filhos, de três e seis anos de idade, com cobertores, brinquedos e um iPad, na lateral do gramado, e entrou em campo para o treino.

Os meninos já estavam acostumados a ter paciência, mas de vez em quando Rodriguez tinha de deixar o treino do Utah Royals, seu time na National Women’s Soccer League (NWSL), para lidar com um nariz sangrando ou brigas entre irmãos.

“Tive de conversar com eles sobre a situação”, disse Rodriguez. “Expliquei que aquele era o emprego da mamãe e que eles tinham de ajudar."

À medida que as equipes esportivas americanas retornam às competições, em ambientes conhecidos como “bolhas”, que limitam o acesso de terceiros, os desafios de cuidar dos filhos durante a pandemia –que já tiveram de ser enfrentados pelos profissionais de saúde, pelas equipes de emergência e por famílias estressadas– começaram a afetar dezenas de atletas de elite, especialmente as que são mães.

Filhos e famílias não podem entrar nas bolhas, nas ligas masculinas de elite, em parte por conta de preocupações com o tamanho e custo da operação.

Mas essas decisões, e decisões opostas nas ligas femininas, também refletem como a sociedade americana em geral trata o cuidado com as crianças –como uma responsabilidade das mulheres, não importa o custo que isso tenha para suas carreiras e saúde mental.

Alguns jogadores da NBA e da Major League Soccer mencionaram motivos de família para ficar de fora quando seus esportes anunciaram o retorno. Mas Rodriguez e suas colegas na NWSL e as mulheres da WNBA em muitos casos não têm a mesma escolha.

Elas jogam em ligas cujas atletas raramente desfrutam dos sofisticados (e dispendiosos) sistemas de apoio necessários para que elas se saiam bem no esporte e como mães. É por isso que as adaptações incomuns que elas estão vendo ao se transferirem dos centros de treinamento dos clubes para os locais de lockdown organizados pelas ligas foram uma surpresa bem-vinda.

As jogadoras da NWSL dizem que essa é a primeira vez que veem esforços reais da liga em benefício das mães. Uma mudança semelhante está em curso na WNBA, em sua bolha na Flórida, graças aos avanços conquistados no novo contrato coletivo de trabalho entre a liga e suas jogadoras.

“Foi um choque que eles tenham feito um esforço para nos ajudar”, disse Jessica McDonald, atacante do North Carolina Courage, que levou seu filho de oito anos de idade ao torneio de verão da NWSL no Utah. McDonald disse que a liga garantiu com antecedência que ela e o filho estariam confortáveis e seguros. O que a levou a pensar: “É mesmo? E onde estava esse apoio todo durante o resto da minha carreira?”.

Nas duas ligas, os filhos se tornaram parte integrante, sentados à beira do campo ou da quadra em seus carrinhos durante treinos, morando em hotéis com os times de suas mães, torcendo nas arquibancadas vazias dos ginásios durante os jogos.

Mas Rodriguez e outras jogadoras disseram que equilibrar as obrigações esportivas e maternas, algo em que elas têm longa experiência, havia sido facilitado pelos esforços das ligas para ajudar: profissionais pagos para cuidar das crianças, acomodações especiais e protocolos de exame de coronavírus adaptados para crianças pequenas.

Há até playgrounds nas bolhas e, no caso da NWSL, um deles é um trepa-trepa colorido a poucos passos do gramado onde os jogos estão sendo disputados. O brinquedo se transformou em atração de mídia social.

Como no caso de muitas outras coisas durante o surto do coronavírus, no entanto, as bolhas também expuseram uma desigualdade gritante: o pequeno número de mulheres que conseguem cuidar dos filhos, como atletas profissionais, e os sacrifícios que elas precisam fazer para isso.

Candace Parker, veterana estrela do Los Angeles Sparks da WNBA, se mudou para um apartamento de dois quartos com Lailaa, sua filha de 11 anos, a fim de poder jogar. Para fazer com que as coisas funcionem, Parker disse que teve de organizar ajuda familiar para cuidar da menina durante os mais de 40 dias que ela deve passar em lockdown esportivo.

Mas Parker diz que jamais houve dúvida de que Lailaa a acompanharia. “Ela fez as malas antes que eu”, disse Parker. “Sempre foi assim. Jogo melhor com ela por perto. Não acho que o Sparks me quereria no time sem ela."

Terri Jackson, presidente do sindicato das jogadoras da WNBA, disse que, quando os planos para a bolha na Flórida estavam sendo organizados, a liga deixou claro que priorizaria as mães, oferecendo-lhes acomodações preferenciais e assumindo parte dos custos que outras jogadoras teriam de bancar por conta própria.

Esse foi um passo à frente importante, disse Jackson. “Quando você observa a liga historicamente, tem de perguntar: se essa é uma liga feminina, onde estão as mães? E você tem de imaginar quantas jogadoras perdemos porque elas planejavam ter filhos e não tiveram apoio."

“Deveríamos ter mais Candaces –e mais Lailaas– na liga”, ela acrescentou.

Ao contrário da WNBA, que já está em sua terceira década de operações, a NWSL ainda está em busca de seu ponto de equilíbrio financeiro, em sua oitava temporada, e os salários das jogadoras continuam a ser comparativamente baixos –entre US$ 20 mil e US$ 60 mil por ano.

Mas as jogadoras que têm filhos elogiaram as medidas proativas da nova comissária da liga, Lisa Baird, que assumiu o comando da NWSL em fevereiro depois que a organização passou anos sem titular. Baird é mãe, e tem uma filha em idade universitária que, dado o orçamento modesto da liga, vem ajudando a tomar conta dos filhos das atletas na bolha da NWSL em Herriman, perto de Salt Lake City, Utah.

Mesmo antes do anúncio da NWSL de que retornaria aos gramados neste trimestre, Baird conversou por telefone com as jogadoras da liga que têm filhos, perguntando o que elas e suas crianças precisariam para participar. Conquistar a adesão das mães foi parte essencial de obter aprovação do sindicato das jogadoras, disse um representante da liga.

“Elas são atletas profissionais, e levam muito a sério suas funções como mães”, disse Baird. “Para elas não era o caso de esperar concessões especiais, mas sim o de explicar o que elas precisavam como parte de seu trabalho."

O simples fato de que a liga tenha oferecido ajuda apanhou McDonald de surpresa. Pela maior parte de sua carreira profissional, ela disse, a sensação era a de que a liga não ligava para o fato de que, além de jogadora, ela também era mãe.

Cada vez que ela era trocada, tinha de montar um novo sistema de apoio para seu filho, Jeremiah –seis times, seis cidades e seis babás em cinco anos, e tudo isso com um salário inferior ao mínimo. Entre as temporadas, ela trabalhava como empacotadora em um armazém da Amazon para pagar por uma babá e assim poder treinar.

Neste final de semana, McDonald e suas colegas de time da Carolina do Norte vão iniciar os mata-matas da Challenge Cup. O Courage é cabeça de chave e deve chegar à final, um sucesso que estenderia a estadia de McDonald e Jeremiah na bolha.

Mas como Rodriguez, Parker e outras atletas, a esperança dela é que a situação tenha trazido melhoras permanentes. “Espero e rezo que a maneira pela qual estão nos tratando seja repetida em futuras temporadas”, disse McDonald.

Tradução de Paulo Migliacci

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