Com Renan Lodi, mina de futebol no Paraná finalmente achou seu ouro

Ida ao Atlético de Madrid realizou sonhos do lateral e recompensou empresários

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Tariq Panja
Curitiba | The New York Times

De muitas maneiras, não há coisa alguma de extraordinário em Renan Lodi. Lateral esquerdo do Atlético de Madrid, um clube espanhol, Lodi é mais um entre as centenas de jogadores brasileiros que atravessaram o Atlântico para defender clubes europeus em competições de elite como a Champions League.

Mais de 50 brasileiros já jogaram finais da Champions, de fato. Lodi, 22, espera se tornar parte desse grupo em breve.

O Atlético de Madrid e sete outros clubes se reuniram em Portugal para a conclusão do torneio deste ano, postergado por conta da pandemia. Os espanhóis jogam contra o RB Leipzig nesta quinta (13), às 16h, pelas quartas de final.

Mas embora Lodi ainda esteja a três vitórias de erguer a taça, sua odisseia europeia já se provou lucrativa para a empresa que o descobriu em uma pequena escolinha de futebol quando ele tinha 13 anos. Também validou um curioso projeto de negócios que gira em torno de um produto de exportação precioso, mas que o Brasil tem em abundância: talento futebolístico.

Desde a década de 1970, a família Stival opera um negócio bem-sucedido de alimentos, um dos maiores do ramo no sul do Brasil, na cidade de Curitiba.

Cerca de 15 anos atrás, a família decidiu se dedicar ao futebol. Como milhões de famílias brasileiras, os Stival são torcedores apaixonados do esporte. Mas perceberam ao longo do tempo que os jogadores haviam se transformado em mercadorias, comprados e vendidos por milhões de dólares, como as toneladas de feijão, arroz e grãos que vendiam a cada semana.

Se os jogadores se tornaram mercadorias, pensaram os Stival, certamente seria possível encontrar uma maneira de ganhar dinheiro vendendo essas mercadorias.

“A ideia era investir nesse negócio porque o Brasil sempre ganhou dinheiro com isso”, disse Rafael Stival em uma entrevista no ano passado, quatro meses antes que Lodi se tornasse parte do êxodo de mais de 300 jogadores de futebol transferidos do Brasil para ligas do exterior em 2019.

Sentado em seu escritório no Trieste Futebol Clube —o clube amador de Curitiba que serve de base aos seus interesses futebolísticos—, Stival, um homem corpulento e de cabelos escuros, com uma rica voz de barítono, descreveu como, depois de tropeços iniciais e numerosos erros, ele criou um negócio baseado na busca de jovens talentos em todo o Brasil, que são aperfeiçoados por um breve período no Trieste e em seguida negociados com os clubes de elite do país na primeira oportunidade.

Para Stival, que comanda as operações futebolísticas da família, investir em jogadores jovens é uma aposta de longo prazo, um processo que ele comparou a plantar sementes que um dia se tornarão árvores frutíferas. E Lodi é seu maior sucesso até o momento.

Descoberto em 2012 por um dos olheiros de Stival em uma escolinha de futebol no interior do estado de São Paulo (que tem 44 milhões de habitantes), Lodi, que tinha 13 anos, foi convidado a viajar a Curitiba para ser avaliado de perto.

Ele se saiu bem o suficiente para ser contratado pelo programa amador de Stival. Mais tarde, foi morar no centro de treinamento do Athletico, pouco depois de seu 14º aniversário.

Na metade do ano passado, aos 21 anos, ele se transferiu para a Europa, em uma transação notável pelo valor (16 milhões de euros), mas também pelo clube comprador, o Atlético de Madrid, um dos maiores times da Europa.

Em entrevista da Espanha em agosto, Lodi disse que se lembra bem daqueles primeiros dias no Trieste: a solidão, o medo, os telefonemas a cada noite para seu pai, nos quais ele implorava para voltar para casa.

Mas também se lembra de que comia melhor no Trieste e, mais tarde, no Athletico, do que em casa, e do fato de que seu talento no futebol respondia por mais do que uma possível carreira profissional. Os pés dele determinariam o futuro de toda uma família empobrecida, algo que mesmo um menino de 13 nos era capaz de compreender.

“Eu sempre tive esse objetivo na cabeça, sabe?”, ele disse, depois de um treino recente. “Dizia a mim mesmo que seria um pai para minha família, que buscaria meus sonhos e tentaria lhes dar condições melhores para avançar no futuro."

A transferência do ano passado realizou esse sonho, e também representou o dia da recompensa para Stival, que recebeu 30% do valor (4,8 milhões de euros).

Pagamentos como esse são cruciais para a ambição futebolística de Stival, e representam o motivo para que ele contrate dezenas de jogadores jovens e os transfira rapidamente a algum dos clubes maiores com os quais tem acordos de desenvolvimento. Quanto mais sementes forem plantadas, maiores as probabilidades de que uma delas dê frutos.

Renan Lodi marca Lionel Messi em jogo do Campeonato Espanhol
Renan Lodi marca Lionel Messi em jogo do Campeonato Espanhol - Lluis Gene - 30.jun.20/AFP

A transferência de Lodi ao Atlético de Madrid representou apenas a segunda transação de um jogador descoberto pela operação de Stival desde que ela começou, em 2005. Mas bastou aquele negócio, disse Rafael Stival, para que a família recuperasse mais de metade de seu investimento.

Em entrevista algumas semanas atrás, Stival disse antecipar que o número de transferências agora viria a crescer, porque dezenas de suas descobertas já avançaram no futebol. Mais de 100 jogadores que passaram pelo Trieste estão registrados por equipes profissionais, a maioria dos quais no Athletico ou no Flamengo.

Os dois clubes têm acordos de parceria que lhes dão prioridade na contratação de jogadores do Trieste.

Stival tem um acordo separado com o Trieste, um time amador bem sucedido criado por imigrantes italianos em 1937. Em troca de investir uma quantia considerável no clube, a família tem o direito de usá-lo como base para seus negócios futebolísticos por 20 anos, um contrato que expira em 2025.

O investimento também permite que Stival receba uma porcentagem dos valores de transferência porque, sob as normas internacionais, só times podem lucrar com vendas de jogadores.

Mas mesmo assim o aprendizado foi difícil. O plano de negócios inicial de Stival tinha por foco garotos mais velhos, que precisariam apenas de um pouco de atenção adicional antes de conseguir espaço em times profissionais. Não demorou para que ele percebesse a maior falha do plano. “Eles desapareciam à noite”, disse Stival, com um suspiro. “Uma bagunça total. Tivemos de aprender."

O plano revisado –concentrar seus esforços em meninos a partir dos 11 ou 12 anos, e não em jovens de 18 ou 19— requereria mais paciência.

“Quando começamos, achamos que em dois anos começaríamos a lucrar”, disse Stival. “Já estamos no ramo há 14 anos e ainda não recuperamos nossos gastos."

Sentado sob sete grandes mapas de estados brasileiros, Stival explicou como os jogadores são descobertos. Cerca de meia dúzia de olheiros –entre os quais ele mesmo– passam meses viajando pelo interior do Brasil, e observam centenas de jogadores em cada viagem.

Dicas sobre prodígios locais vêm de uma rede de treinadores, professores e outros observadores espalhados pelo Brasil, uma conexão que levou Stival a algumas das partes mais remotas do país, entre as quais, em uma ocasião, uma reserva indígena.

Os melhores jogadores são convidados a visitar o Trieste para um teste que pode durar até duas semanas.

Leis locais e restrições etárias criadas para proteger crianças contra o tráfico significam que a maioria dos jogadores não pode se hospedar no clube, o que significa que suas famílias se veem diante de decisões difíceis imediatamente.

Algumas delas deixam suas cidades de origem a centenas ou milhares de quilômetros de distância para acompanhar os filhos, atraídas pela esperança de uma oportunidade capaz de mudar suas vidas, se o teste for um sucesso. Mas o plano, ao menos da parte de Stival, é que estadia seja sempre curta.

“Nossa ideia é descobrir talentos”, disse Stival. “Não queremos segurar um jogador dos 10 aos 20 anos. Queremos transferi-lo a um clube para que continue. Um menino com 10, 11, 12, ou 13 anos, que tenha condições de morar perto –esses são os garotos que selecionamos."

“Tudo acontece rápido, aqui. Cada dia que eles passam conosco representa um custo”, ele disse.

Por cinco anos, o Triste teve um acordo exclusivo com o Athletico. Mais de 60 jogadores, entre os quais Lodi, passaram pelo Trieste e chegaram ao Athletico, que hoje têm instalações que estão entre as melhores do Brasil, antes que o contrato fosse encerrado abruptamente em 2018.

O Athletico, informou o presidente do clube em uma mensagem de WhatsApp, havia simplesmente decidido cuidar sozinho de sua busca e desenvolvimento de talentos jovens.

A decepção de Stival durou pouco. Menos de 24 horas mais tarde, dirigentes do Flamengo chegaram ao seu escritório para discutir um acordo. Um contrato foi assinado, e agora os talentos mais promissores do Trieste vão para o Rio.

No ano passado, porém, veio o desastre. Um incêndio varreu um alojamento temporário no centro de treinamento do Flamengo, onde viviam dezenas de jovens atletas, matando 10 meninos, entre os quais três que passaram pelo Trieste.

As mortes atraíram atenção tardia aos cuidados que o Brasil, o maior exportador mundial de talentos futebolísticos, dedica aos milhares de meninos e jovens que entram no sistema do futebol com a esperança de derrotar as probabilidades adversas.

Histórias perturbadoras não demoraram a surgir em outros clubes –alojamentos superlotados, condições perigosas, administração descuidada– e as autoridades fecharam os locais com mais violações e prometeram reforçar a fiscalização.

No Trieste, porém, algo de estranho aconteceu. Os pais esperançosos, agora cientes da ligação entre o clube e a academia de futebol do Flamengo, começaram a entrar em contato. Eles queriam que o clube aceitasse seus filhos em seu programa de desenvolvimento.

Stival não tinha como atender aos pedidos, então. Um ano mais tarde, com a receita da transferência de Lodi recebida, as operações do Trieste continuam a se expandir. O Flamengo levou mais de 30 jogadores do Trieste para suas equipes juvenis nos últimos 18 meses, e aqueles que não encontraram vagas no time foram encaminhados a outros clubes. Stival espera que seus investimentos venham a criar novas oportunidades de lucro.

Em uma tarde recente, Stival ligou a TV e viu que o Atlético de Madrid estava jogando uma partida do Campeonato Espanhol. Subindo e descendo o gramado pela ala esquerda, lá estava Lodi, realizando o sonho de incontáveis adolescentes brasileiros. Para a família Stival, ele representava algo mais: uma prova de sucesso, personificada por um lateral esquerdo ofensivo.

Caso Lodi e o Atlético de Madrid vão longe na Champions League este ano, Stival pode ter retornos adicionais sobre seu investimento. Como parte da transferência de Lodi no ano passado, o Athletico negociou uma bonificação de três milhões de euros com base no desempenho do atleta na Espanha.

Tradução de Paulo Migliacci

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