Descrição de chapéu Seleção Brasileira

Nascido há 100 anos, Barbosa criou sua própria redenção para o Maracanazo

Vitorioso goleiro considerou triunfo do Vasco sobre o Peñarol como revanche de 1950

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São Paulo

Quase um ano após a derrota para o Uruguai no jogo final da Copa do Mundo de 1950, Moacyr Barbosa esteve no país vizinho. O seu Vasco enfrentaria o Peñarol, em amistoso no Estádio Centenário, o primeiro encontro de brasileiros e uruguaios no futebol desde o Maracanazo.

Havia clima de festa entre os charrúas, que ainda comemoravam a conquista do bicampeonato mundial. Nas duas equipes, protagonistas do jogo emblemático entre as seleções: cinco vascaínos haviam disputado a partida no Maracanã, e na equipe aurinegra eram sete os atletas, entre eles Alcides Ghiggia, que haviam vestido celeste naquela fatídica partida.

No dia 8 de abril de 1951, em Montevidéu, os cruzmaltinos não tomaram conhecimento do adversário e venceram por 3 a 0, gols de Friaça, Ademir (que jogou com febre) e Ipojucan.

Na edição de O Globo do dia seguinte, logo abaixo da manchete que celebrava o triunfo dos cariocas, o jornal dava o tom daquele confronto que, apesar de amistoso, tinha grande significado para o futebol brasileiro: "Num jogo que valeu como revanche de 16 de julho de 1950, o Vasco derrotou o Peñarol por três a zero!".

Mosaico com as palavras Barbosa 100 nas cadeiras
Homenagem do Vasco ao centenário do goleiro Barbosa, que fez história no clube, em São Januário - @VascodaGama no Twitter

As palavras escolhidas pelo Globo seriam as mesmas adotadas por Barbosa em um esforço pessoal de tentar se livrar da dor e da culpa atribuída a ele pela derrota no Mundial. Nascido há 100 anos, em um 27 de março como este sábado, o goleiro brasileiro viveu no Centenário, com a camisa do Vasco, a sua jornada redentora. Ou o mais próximo que, acreditava Barbosa, chegou de uma redenção.

"Os uruguaios diziam que o jogo ia ser a confirmação daquilo que eles conquistaram no Maracanã. Mas o que aconteceu? Fui lá e ganhei de 3 a 0. A mesma decepção que tivemos aqui [no Brasil] eles tiveram lá. Não puderam festejar. O Peñarol era a base do Uruguai. O Vasco, a base do Brasil. Se houve vingança, essa foi a primeira e única", disse o goleiro em depoimento ao livro "Dossiê 50", de Geneton Moraes Neto.

Até o fim de sua vida, a figura de Barbosa não pôde mais ser dissociada do gol de Ghiggia. A responsabilidade pela derrota no Maracanã, originada pela visão racista de que o negro não seria capaz de ser um arqueiro seguro, foi sempre o relato mais óbvio que resumiu e ofuscou uma carreira vitoriosa para além do vice-campeonato mundial.

Reproduzido por décadas, o discurso da fragilidade do negro criou uma mística negativa para a posição do goleiro e ainda habita o imaginário do brasileiro.

De Barbosa até a Copa do Mundo de 2018, só houve dois goleiros negros titulares da seleção brasileira em Mundiais. Manga, em 1966, e Dida, reserva em 1998 e 2002, que foi o dono da camisa 1 em 2006, na Alemanha.

Nascido em Campinas, Moacyr Barbosa mudou-se ainda jovem para São Paulo com sua família após a morte do pai. Morador da Liberdade, na região central da capital, já jogava como goleiro no futebol de várzea, mas também se arriscava como ponta esquerda.

Iniciou a carreira profissional em 1941, no Clube Atlético Ypiranga. Dos enfrentamentos com as equipes do estado, chamou a atenção de Domingos da Guia, ídolo do Vasco e na época jogador do Corinthians, que o recomendou à diretoria cruzmaltina.

Foi no time de São Januário que Barbosa viveu o auge de sua carreira. Diz o ditado que todo grande time começa por um grande goleiro, e o paulista de Campinas fazia jus a essa máxima.

Barbosa salta para fazer defesa
O goleiro Barbosa em 1949 - Folhapress

Com o clube carioca, fez parte do Expresso da Vitória vascaíno, equipe que conquistou cinco campeonatos estaduais do Rio nas décadas de 1940 e 1950 (1945, 1947, 1949, 1950 e 1952). Nas duas últimas taças, já era vilão do país em razão do Maracanazo, mas ainda conservava o carinho dos cruzmaltinos.

Com o Expresso, também levantou a taça do Sul-Americano de clubes em 1948, disputado em Santiago, no Chile. Na decisão do torneio, contra o River Plate de Alfredo Di Stéfano, Barbosa teve atuação fundamental para segurar o 0 a 0 que deu o título aos cariocas.

Após passagens curtas por Bonsucesso e Santa Cruz, retornou ao Vasco em 1958 para levantar mais dois troféus: o estadual de 1958 e o Rio-São Paulo no mesmo ano. Ao todo, disputou 494 partidas pelo clube de São Januário, de onde se despediu em 1962, para encerrar a carreira no Campo Grande, do Rio.

Vestiu a camisa da seleção brasileira em 22 oportunidades e chegou a ser titular mesmo após a Copa do Mundo –no Sul-Americano de Lima, em 1953. Mas em um jogo contra o Botafogo naquele mesmo ano, fraturou a perna direita e, por conta da lesão, não teve a possibilidade de brigar por uma vaga no grupo que foi à Copa do Mundo de 1954. Essa sim, sua principal chance de perdão nacional, mas que não aconteceu.

Aposentado dos gramados, foi funcionário da Suderj (Superintendência de Desportos do Estado do Rio de Janeiro) e trabalhou no complexo esportivo do Maracanã. Relutava, porém, em pisar novamente no gramado, no qual havia vivido sua maior frustração esportiva e, descobriria ao longo de toda a vida, também pessoal.

Estreia de Barbosa pelo Vasco, em jogo contra o Grêmio, em 1945
Estreia de Barbosa pelo Vasco, em jogo contra o Grêmio, em 1945 - CPAD-CRVG

O estádio, apesar das glórias vividas ali com o Vasco, se tornou o seu carma. A partir do 16 de julho 1950, Barbosa nunca mais pôde viver em paz.

Meses depois do jogo com o Uruguai, o goleiro foi convidado a prestar esclarecimentos no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) sobre as razões que o levaram a assinar um manifesto do Partido Comunista, à época ilegal no Brasil.

"Uma ironia: Barbosa era o goleiro predileto de Getúlio Vargas", escreveu Geneton Moraes Neto, lembrando que o país tinha acabado de eleger o gaúcho, admirador do arqueiro, para um novo governo.

Esteve ao lado de sua companheira, Clotilde, por 54 anos, até a morte dela em 1997. Três anos depois, foi a vez de Moacyr Barbosa se despedir. Morreu na Praia Grande, litoral de São Paulo, onde vivia com a filha adotiva, responsável por cuidá-lo até o fim de seus dias.

Ao longo de seus 79 anos, se reencontrou em algumas oportunidades com seu carrasco, Ghiggia. O uruguaio dizia que, por respeito, falavam de tudo, menos de futebol. Mas Barbosa confessou, talvez para aliviar a alma, que certa vez abriu uma exceção.

"Eu disse a Ghiggia que eu também já calei o Uruguai, no Estádio Centenário, em Montevidéu. Venci os uruguaios por 3 a 0", disse o goleiro, na primeira pessoa, dono de sua própria redenção.

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