Time da 'última república soviética' estreia com vitória na Champions

FC Sheriff é da Transdnístria, e venceu o Shakhtar, desalojado pela guerra na Ucrânia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O principal time de futebol daquela que é considerada a "última república soviética" fez sua estreia na Champions League com uma vitória sobre um clube que também é vítima da confusão política e territorial que marcou o ocaso do império comunista.

O FC Sheriff bateu o ucraniano Shakhtar Donetsk por 2 a 0, em jogo realizado em sua casa, a Grande Arena Esportiva de Tiraspol, capital da Transdnístria —apesar do nome pomposo, o estádio comporta 13 mil torcedores, e não estava lotado.

Autor do primeiro gol do Sheriff, Traoré escapa de Mudrik (dir.) e do brasileiro Ismaily (esq.) em Tiraspol
Autor do primeiro gol do Sheriff, Traoré escapa de Mudrik (dir.) e do brasileiro Ismaily (esq.) em Tiraspol - Gleb Garanitch/Reuters

Se o nome parece pouco familiar, não estranhe. O território é um dos cadáveres insepultos da dissolução da União Soviética, em 1991, e só é reconhecido como país pelos seus três irmãos: Nagorno-Karabakh (área armênia no Azerbaijão, objeto de guerra em 2020) e os encraves separatistas russos da Abkházia e Ossétia do Sul, na Geórgia (alvo de conflito em 2008).

Diferentemente deles, contudo, a região proporciona uma viagem no tempo. Sua bandeira e brasão envergam a foice e o martelo, caso único no mundo para uma área que se pretende país, a arquitetura soviética está toda mantida —assim como a inescapável estátua de Vladimir Lênin na capital.

O regime político, contudo, mudou. Se diz uma democracia multipartidária, mas na prática é um Estado visto pelo resto do mundo como um ente criminoso que baseia sua economia em contrabandos diversos. Há eleições, consideradas ilegítimas pela União Europeia.

Mais que isso, é uma república separatista e deverá ficar assim pois mantém sua fidelidade à poderosa Rússia de Vladimir Putin, que garante o status quo da área com tamanho equivalente à da cidade de Uberlândia (MG) e população igual à de São João de Meriti (RJ) estacionando 1.200 soldados por lá, além de subsidiar energia e pensões.

A presença é constante desde 1992, como parte do cessar-fogo entre a Transdnístria e Moldova, o país que a comunidade mundial reconhece como sendo soberano sobre a região. Em 1990, a então Moldávia buscou se separar da União Soviética, e políticos concentrados na área entre o rio Dniester (daí seu nome) e a Ucrânia protestaram.

A guerra civil durou dois anos. Desde então, a Moldova busca suas raízes na Romênia, onde há uma província de mesmo nome, língua, religião e cultura comuns. Mas na Transdnístria ainda se usa o russo e o cirílico, além da versão local do rublo, em oposição aos "latinos" do outro lado do rio.

Ao longo dos anos, as relações se normalizaram relativamente, e aí entra o futebol. O Fotbal Club Sheriff foi criado em 1997 pelo empresário Viktor Guchan, dono de metade da economia transdnístria e acusado por políticos rivais de ser um oligarca com o pé no crime organizado.

O time foi aceito na liga moldova, em nome da boa vizinhança, e tornou-se o maior campeão local, com 19 de 21 troféus disputados desde então. Disputou quatro vezes a Liga Europa, a série B continental, e agora chega à sonhada Champions —garantindo € 19 milhões de premiação, € 7 milhões a mais do que a avaliação de todo seu elenco.

Com isso, a estrela do xerife que evoca o passado de policiais soviéticos de Guchan e seu sócio se tornou tão onipresente em Tiraspol quanto a antiga estrela comunista.

O sucesso foi impulsionado pelo pé-de-obra estrangeiro, com a usual participação de jogadores brasileiros: Nadson foi herói do time nos anos 2000, e nesta quarta houve cinco egressos do Brasil em campo, o maior contingente gringo, seguido por gregos, colombianos, peruanos, africanos e até um luxemburguês.

O jogo desta quarta foi vencido com gols do malinense Traoré e do guineense Yansané, ambos sendo assitidos pelo brasileiro Cristiano Leite. O triunfo ainda trouxe outro componente da turbulenta geopolítica do espaço ex-soviético: foi sobre o Shakhtar.

O time ucraniano, que ganhou destaque no fim dos anos 2000, é conhecido no Brasil pelo inusual fornecimento de jogadores para a seleção —ainda há vários lá.

Em 2014, contudo, a derrubada do governo pró-Kremlin em Kiev, Putin anexou a península da Crimeia e fomentou uma guerra civil separatista na área do Donbass, que quase sediou um conflito maior neste ano.

Donetsk e Lugansk são as principais cidades dessas áreas até hoje nas mãos rebeldes, e o Shakhtar teve de se mudar para Lviv. Continua um time rico para padrões do Leste Europeu, mas com menor expressão ante os tempos em que chegou a ganhar a Liga Europa (2009).

Assim, o Sheriff (elenco de € 12 milhões, segundo o site Transfermarkt) derrotou o Shakhtar (€ 180 milhões) e foi dormir à frente de sua chave, superando no saldo de gols o peso-pesado Real Madrid (€ 780 milhões), que bateu a tradicional Inter de Milão (€ 575 milhões) por 1 a 0.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.