Homem que colocou o futebol francês em risco diz que a culpa não foi dele

Liga local foi levada à beira da catástrofe pelo colapso de um contrato de transmissão

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Tariq Panja
Nova York | The New York Times

Sentado sozinho a uma longa mesa dentro de uma sala de audiência na sede da Assembleia Nacional francesa, o empresário espanhol estava tentando explicar por que as coisas saíram errado, tão, tão errado.

Jaume Roures, fundador de uma companhia de mídia com interesses muito diversificados, foi o mais recente –e talvez o mais significativo– dos depoentes interrogados por legisladores que buscam compreender por que o futebol profissional na França foi levado à beira da catástrofe pelo colapso de um contrato de transmissão.

O acordo, que tinha sido definido como uma verdadeira mudança no jogo quando foi assinado, em 2018, foi promovido como uma forma de mudar drasticamente as perspectivas dos maiores clubes franceses, aproximando-os de seus rivais na Espanha e Itália e talvez até da Premier League da Inglaterra, o torneio nacional mais dominante do planeta.

Em lugar disso, o contrato de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 5,5 bilhões na cotação atual) com a Mediapro, a companhia de Roures, que contava com investidores chineses, desabou pouco depois de ter entrado em vigor, em 2020.

Jaume Roures tentou renegociar o acordo de transmissão do futebol da França e acabou deixando o país - Nacho Doce - 19.abr.21/Reuters

O empresário suspendeu os pagamentos, apelando por uma renegociação à luz do efeito financeiro da pandemia do coronavírus. A liga discordou, e ele, incapaz de obter novos termos, desistiu e deixou a França, país onde no passado buscou refúgio depois de combater a ditadura na sua Espanha natal.

O efeito do fracasso –sobre Roures e sua empresa, sobre os executivos dos clubes e sobre o futebol francês –continua a se fazer sentir.

Clubes que não muito tempo atrás viviam consumidos por sonhos febris de competir com alguns dos maiores rivais europeus agora estão repletos de preocupações sombrias sobre como sobreviver. Para cobrir os rombos deixados em seus balanços pelo colapso do contrato, os times que puderam fazê-lo promoveram a venda de muitos jovens astros e veteranos confiáveis, na janela de transferências da metade do ano, às vezes por valores muito abaixo dos preços de mercado, já que este mesmo despencou.

E um leilão conduzido neste ano para selecionar o sucessor da Mediapro como detentor dos direitos de transmissão do Campeonato Francês terminou com a Amazon conquistando um contrato que previa pagamento de menos de um terço do valor um dia prometido por Roures e sua empresa.

Na audiência de setembro, Roures, careca e de óculos, parecia mais um professor universitário do que um magnata do futebol. Estudando os papéis que estavam posicionados diante dele na sala 6.242 do Palácio Bourbon, ele começou por um monólogo em francês com sotaque espanhol que enumerava diversos fatores pelos quais, na opinião dele, as coisas tinham desandado de maneira tão espetacular. Ele continuava a falar em tom monótono quando um dos legisladores, Cédric Roussel, resolveu interrompê-lo.

“Você dá a impressão de que todos foram culpados exceto a Mediapro”, disse Roussel, sentado a uma bancada elevada que ele dividia com os demais integrantes do comitê de inquérito.

Muita gente na França continua furiosa com a saída de Roures, com a maneira pela qual ele fechou o novo canal estabelecido para transmitir jogos, com seus motivos para abandonar os compromissos assumidos na assinatura do contrato, sob um pagamento de apenas 100 milhões de euros em indenização (R$ 639 milhões), e com o modo pelo qual os negócios dele começaram a se recuperar da pandemia enquanto o futuro dos clubes de futebol da França continua envolto em dúvida e incerteza.

Para Roures, planos teriam funcionado sem a pandemia - Miguel Medina - 4.set.21/AFP

”Ainda podemos ter uma catástrofe à espera”, disse Pierre Maes, consultor e autor de “Le Business des Droits TV du Foot”, um livro sobre os direitos de transmissão televisiva de futebol.

Em entrevista ao The New York Times pouco antes de seu depoimento aos legisladores, Roures renovou sua afirmação de que os planos dele teriam funcionado caso a pandemia não tivesse mudado tudo. Para que funcionassem, porém, o novo canal da Mediapro, Telefoot, teria precisado obter um milhão de assinantes, muito mais que os 300 mil que supostamente tinha conseguido atrair até o momento de seu colapso.

Contemplando a maneira pela qual as coisas transcorreram, Roures agora diz que foi a liga francesa que errou ao não renegociar com ele. Ele afirma que sua nova oferta –cerca de 580 milhões de euros (R$ 3,73 bilhões)– era uma quantia duas vezes maior do que a liga conseguiu obter da Amazon; que o fracasso do governo em combater a pirataria contribuiu para a saída apressada da Mediapro; e que a Canal Plus, principal operadora francesa de TV paga, tentou abusar de sua posição dominante no mercado.

Essa posição pode explicar por que ele não foi capaz de renegociar seu contrato com a liga no final de 2020. Roures, disse um proprietário de clube e integrante do conselho da liga francesa, “perdeu toda a credibilidade, e ninguém queria ouvir o que ele tinha a dizer”.

Um porta-voz da liga não respondeu a um pedido de comentário.

Enquanto isso, Roures, que ganhou proeminência na virada do século quando conquistou os direitos de transmissão nacionais dos jogos dos gigantes espanhóis Real Madrid e Barcelona, lamentava o preço que pagou. “Houve danos significativos à nossa reputação”, ele disse, concedendo entrevista na sede da Mediapro em Barcelona.

Questionado se sua incursão no futebol francês havia feito que ele tivesse problemas para dormir, respondeu que não: “Durmo como um bebê”.

Durante a entrevista, Roures tentou oferecer diversas explicações sobre o acontecido, mas se recusou a acusar diretamente os clubes ou a liga francesa de futebol. Ele deu a entender que seu novo ponto de vista, agora que observa a situação de fora, permite-lhe vislumbrar o problema estrutural que manteria a liga francesa eternamente à sombra das rivais: os clubes do país, disse Roures, dependem demais da transferência de jogadores para manter suas contas equilibradas.

“Eu diria que essa é a única liga europeia na qual o papel das transferências é fundamental, e esse é um grande ponto fraco”, afirmou. As receitas televisivas mais altas que ele tinha prometido, disse o empresário, permitiriam que os clubes ao menos em teoria mantivessem seus principais astros por um pouco mais de tempo.

Mas, mesmo em meio à crise, e diante dos prejuízos que surgiram nos balanços de clubes de Lille e Marselha, a liga francesa repentinamente se transformou em uma proposta de marketing mais atraente do que em qualquer momento de sua história. Isso acontece por conta da presença do Paris Saint-Germain, um clube em geral protegido pela riqueza de seu proprietário, o governo do Qatar, contra o tumulto financeiro que arrastou seus rivais, e reforçado pela recente contratação de Lionel Messi.

Mas a 'messimania' será menos lucrativa para a liga do que para a Amazon, que garantiu seu contrato a preço reduzido antes da chegada do argentino.

Ele chegou à França pouco depois da assinatura do acordo, e os contratos já estavam todos assinados e com preços estabelecidos. “A Amazon teve muita sorte”, disse Roures. “Mas os direitos internacionais sobre o campeonato estão vendidos até 2025, e não creio que eles vão representar grande aumento de receita para a liga francesa.”

 Tradução de Paulo Migliacci

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