Clube da 5ª divisão inglesa vive boom após compra por atores de Hollywood

Ryan Reynolds e Rob McElhenney adquiriram o Wrexham com o intuito de produzir documentário

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Rory Smith
Londres | The New York Times

​As câmeras estavam rolando antes mesmo de os atores Ryan Reynolds e Rob McElhenney terem certeza de que existiria alguma coisa para filmar.

Em novembro do ano passado, os dois estavam aguardando ansiosamente para descobrir se sua oferta para adquirir o Wrexham, um clube galês encalhado na quinta divisão do futebol da Inglaterra, sobreviveria a uma votação do Supporters’ Trust, o conselho de torcedores que resgatou o time da falência e o vinha mantendo em operação, com um orçamento ínfimo, há anos.

Os atores tinham motivos para se sentirem confiantes. Quando apresentaram suas ideias ao conselho em uma conversa via vídeo, a reação foi positiva. Mas, à espera do telefonema que os informaria sobre o resultado da votação, eles não sabiam se receberiam boas ou más notícias, e isso de certa forma os colocava em uma enrascada.

Os dois atores sorriem em campo com microfones nas mãos
Ryan Reynolds e Rob McElhenney no campo do Wrexham - Paul Burrows - 30.out.21/Reuters

McElhenney propôs a ideia de comprar um clube de futebol depois de assistir fascinado às duas temporadas de "Sunderland Até Morrer", série da Netflix que retrata os altos (passageiros) e baixos (frequentes) de outro clube decadente no Reino Unido pós-industrial. "Ele me disse que era isso que precisávamos fazer: comprar um clube e fazer um documentário", disse Humphrey Ker, um dos roteiristas de McElhenney e a pessoa que recomendou o documentário sobre o Sunderland a ele.

Se o conselho do Wrexham rejeitasse a oferta dos atores, o plano estaria destruído: sem clube, sem documentário. Mas para que o documentário funcionasse, era preciso que acompanhasse as aventuras futebolísticas da dupla desde o primeiro passo. Por isso, enquanto esperavam o telefonema, McElhenney e Reynolds tinham de decidir, na prática, o que vem primeiro: o conteúdo ou o clube?

O Wrexham não é o único clube que vem enfrentando essa questão. O futebol vem sendo um terreno fértil para o cinema e a televisão há muito tempo, mas a ascensão das plataformas de streaming –com seu apetite insaciável, orçamentos generosos e séries de sucesso envolvendo clubes de futebol inteiramente fictícios –provocou um dilúvio de novas produções.

Algumas, como a série de documentários "Tudo ou Nada", da Amazon, tentam explorar os atrativos inerentes de alguns dos maiores clubes do planeta, deslocando múltiplas equipes de câmera para acompanhar clubes como o Manchester City, o Tottenham e a Juventus por toda a temporada.

Outras optaram por rejeitar o controle editorial –e os pagamentos consideráveis– exigidos pelas superpotências do esporte em troca de uma estética mais autêntica, como a que "Sunderland Até a Morte" personifica: o clube é menos o tema do documentário que um pano de fundo diante do qual histórias humanas se desenrolam.

Mas existe uma diferença crucial entre muitos desses novos projetos e seu predecessor. Em Sunderland, os produtores eram simples observadores do clube. No caso do Wrexham, e de outros clubes, eles são algo mais: são atores no drama.

"Clubes de futebol são o melhor investimento do planeta no campo do conteúdo", disse Matt Rizzetta, presidente da agência de criação North Six Group e, desde 2020, principal acionista do Campobasso, um time da terceira divisão italiana. "Eles representam um conjunto de valores, e são capazes de criar uma conexão automática com as pessoas que quase nada mais consegue superar."

Rizzetta disse que sua decisão de investir em futebol foi orientada pelo coração –ser dono de um time era "o sonho de sua vida", segundo ele, e especialmente de um clube localizado na região da Itália de onde vieram seus avós. Mas seu raciocínio por trás da compra do Campobasso foi governado pelo cérebro, acima de tudo.

"Nós estudamos cerca de 20 clubes, todos naquela região", disse Rizzetta. O Campobasso se destacou. No passado, o clube chegou a subir para a segunda divisão, mas nos últimos anos cair se tornou muito mais frequente do que subir. O clube fica na cidade de Molise, uma região que se queixa de ser desconsiderada pelo resto do país: "Molise Non Esiste" (Molise não existe, na tradução do italiano), como afirma o autodepreciativo local.

Isso funcionava perfeitamente para Rizzetta. A estratégia dele tinha como base "conteúdo, narrativa, marketing e mídia", ele disse. "Ser dono de um clube hoje é diferente do que era nas décadas de 1980 e 1990. Os times provincianos, em especial, precisam de novas fontes de receita para reinvestir em seu produto, e o conteúdo é um dos canais menos utilizados."

Para remediar essa deficiência, o North Six Group, de Rizzetta, assinou um contrato com o Italian Football TV, um canal do YouTube, para uma série de documentários que acompanharia o Campobasso em suas tentativas (quem sabe bem-sucedidas) de conseguir sua primeira promoção à divisão superior em décadas.

"Era uma história que precisava ser contada, um time de uma parte do país que tinha sido esquecida", disse Rizzetta. A obscuridade ajudava a tornar o projeto viável, em alguma medida. "Era um clube pequeno e sonolento", ele disse. "Parecia uma startup. Tínhamos uma página em branco, de certa forma. Nada do que pudéssemos tentar seria errado."

Nem todos os torcedores recebem esse tipo de abordagem positivamente. Na metade deste ano, surgiu o anúncio de que Peter Crouch, atacante aposentado do futebol inglês, se tornaria parte do conselho do Dulwich Hamlet, um clube sediado em uma região endinheirada do sul do Londres pelo qual ele tinha jogado um punhado de vezes no começo de sua carreira.

Crouch segura um microfone vermelho e ajeita o cabelo em estádio de futebol
Peter Crouch, que também é comentarista de futebol no Reino Unido - Dylan Martinez - 20.mar.21/Reuters

A decisão não tinha sido motivada inteiramente por altruísmo. As experiências de Crouch, informaram notícias publicadas dias mais tarde, serviriam de base a um documentário bancado pelo serviço de streaming Discovery+. De acordo com diversas pessoas envolvidas no projeto, a empresa tinha concebido a ideia explicitamente como uma oportunidade para criar sua versão de "Sunderland Até a Morte".

As recepções ao projeto foram "conflitantes", disse Alex Crane, antigo presidente do conselho de torcedores do Dulwich Hamlet. "Alguns torcedores estão genuinamente empolgados", escreveu Crane em uma mensagem de WhatsApp. "Outros estão muito céticos e querem saber o que o clube tem a ganhar com isso."

O tema aparente do documentário –o de que o Dulwich Hamlet enfrenta um "futuro sombrio" e Crouch chega de paraquedas para salvar o clube– não foi aceito por todos. O Brixton Buzz, um veículo noticioso da comunidade, sugeriu, com o uso de alguns palavrões, que "a narrativa televisiva" foi concebida apenas para servir à série.

Essa armadilha –manipular a mensagem de forma a torná-la mais fácil de promover– é algo que Rizzetta insiste em que os clubes precisam evitar. Em setembro, o North Six Group adicionou o Ascoli –da segunda divisão italiana– ao seu acervo de clubes. A empresa atraiu o interesse do ex-proprietário do time, que a via como uma "operadora estratégica" capaz de reproduzir o sucesso que conquistou com o Campobasso em escala maior. Entre as primeiras coisas que os novos proprietários fizeram estava assinar um contato com o Italian Football TV.

"O conteúdo é grande parte de nossa estratégia", disse Rizzetta. "Mas terá de ser feito de um jeito diferente. O Ascoli tem uma mensagem, marca e história diferente. E é sagrado para sua comunidade".

Reynolds e McElhenney foram igualmente explícitos sobre seus planos. "O documentário é uma parte imensa" do projeto, disse McElhenney durante a primeira visita deles a Wrexham, em outubro. "Sentimos que essa é a melhor maneira de realmente mergulhar fundo na comunidade. Os jogos podem ser televisionados, mas, se não acompanharmos as histórias dos jogadores e da comunidade, no fim ninguém vai ligar."

Os dois filmam ação em campo da beira do gramado
Para Ryan Reynolds e Rob McElhenney, o clube e o conteúdo andam juntos - Paul Burrows - 30.out.21/Reuters

O Wrexham já começou a sentir os benefícios de sua aproximação com Hollywood. Muitas contratações caras chegaram na intertemporada para reforçar o time. E também houve investimento na infraestrutura do clube.

"O estádio está sendo reformado", disse Spencer Harris, que era diretor do clube antes da tomada de controle. "O centro de treinamento do time principal melhorou muito. O clube está construindo para o longo prazo. O processo parece sustentável."

Parte do dinheiro novo veio da venda de ingressos –o público aumentou nesta temporada– e parte da venda de camisas. Em outubro, o Wrexham já tinha vendido oito mil camisas, o que equivale às vendas de quase um ano inteiro em temporadas passadas. E a corrida de compras natalina ainda não tinha começado.

Mas um detalhe talvez mais significativo –e lucrativo– é que o próprio uniforme mudou. A camisa que o clube usa nas partidas que joga fora de casa agora é verde e cinzenta, a cor do Philadelphia Eagles, o time da cidade natal de McElhenney. A Ifor Williams Trailers, que era a principal patrocinadora do Wrexham, foi substituída por uma marca muito mais reconhecível, a do TikTok. E o logotipo da Expedia agora enfeita a camisa.

Embora o primeiro jogo da temporada do clube tenha sido transmitido ao vivo pela TV inglesa, não são as audiências que acompanham a National League no BT Sport que convenceram marcas importantes como essas a investir no Wrexham. O que as atraiu foi a perspectiva de aparecer no horário nobre da TV.

Em maio, Reynolds e McElhenney anunciaram, no estilo sarcástico que caracterizou sua direção do time até agora, que haviam vendido duas temporadas de seu documentário, "Welcome to Wrexham", ao canal FX. As imagens incluirão o momento em que os dois receberam o telefonema informando-os de que a proposta de compra havia sido aceita pelos torcedores. Tudo foi capturado pelas câmeras. Ou seja, conteúdo e clube andam juntos.

Tradução de Paulo Migliacci

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