'Sou o profeta do apocalipse', diz Mequinho, 1º brasileiro grande mestre de xadrez

Esportista atingiu o nível há 50 anos e foi ídolo ao lado de Pelé e Emerson Fittipaldi

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São Paulo

Xadrez não é mais o assunto favorito de Henrique Costa Mecking. Conhecido como Mequinho e prestes a completar 70 anos, o maior enxadrista do Brasil prefere falar de religião.

"Fui escolhido por Jesus como profeta do apocalipse há 12 anos", afirma. De acordo com ele, ainda falta ser ungido por um bispo para ser reconhecido por toda a Igreja Católica. Quando isso acontecer, diz, muita coisa vai mudar.

"A partir daí, vou poder ajudar a Igreja, o mundo, tudo da melhor maneira possível. E, naturalmente, salvar o Brasil do comunismo e da guerra civil sangrenta", diz, em referência a castigos mencionados em suposta aparição de Nossa Senhora em Cimbres, no distrito de Pesqueira (PE).

Mequinho, em retrato em dupla exposição com tabuleiro; xadrez já não é o assunto preferido do grande mestre, mas ele será sempre ligado à modalidade - Eduardo Knapp - 14.jul.15/Folhapress

Sua intensa relação com a religião é antiga. Começou em março de 1978, quando passou a frequentar um grupo da Renovação Carismática Católica no Rio, onde morava.

Meses antes, Mequinho tinha descoberto que sofria com a miastenia gravis, uma doença que afeta os músculos e, em casos mais severos, pode levar à morte.

Seu quadro ficou dramático, com frio incontrolável, fraqueza muscular e incapacidade de engolir, a ponto de se alimentar com comida batida no liquidificador. Ele acreditava que morreria em questão de semanas.

De acordo com Mequinho, em maio de 1979, ocorreu um milagre: numa oração conduzida por uma senhora conhecida como Tia Laura, ele foi curado por Jesus Cristo, que o salvou de 99% da doença.

Mequinho insistiu em continuar jogando xadrez, mas o cansaço o impedia de enfrentar partidas mais demoradas. Precisou abandonar os tabuleiros por um total de 17 anos. Tentou voltar na década de 1990, sem sucesso; depois, conseguiu na de 2000, só que não no mesmo nível.

Antes de parar, nos anos 1970, Mequinho era cotado para ser campeão mundial. No ranking da Fide (Federação Internacional de Xadrez, na sigla em francês), chegou a aparecer em terceiro lugar, o auge de um enxadrista que surgiu como garoto-prodígio num país sem tradição nesse esporte.

Nascido em Santa Cruz do Sul (RS) em 23 de janeiro de 1952, Mequinho aprendeu a jogar xadrez por volta dos seis anos em São Lourenço do Sul (RS), onde tinha ido morar ainda bebê. Assombrou os moradores da pequena cidade ao enfrentar os adultos de igual para igual quando tinha sete anos e mal alcançava as peças em cima da mesa.

Aos oito, mudou-se para Pelotas (RS), município que era maior e reunia alguns dos melhores jogadores do país. O menino evoluiu. Sagrou-se campeão municipal e estadual aos 12 e brasileiro aos 13, uma façanha que chamou a atenção de enxadristas em todo o mundo.

No começo de 1967, logo após completar 15 anos, Mequinho conquistou a taça sul-americana, proeza sem precedentes na história do xadrez.

Graças à atuação no torneio continental, o garoto-prodígio atingiu o patamar de mestre internacional. Antes dele, no Brasil, apenas o mineiro Eugênio German havia pisado nesse degrau, em 1952, aos 21 anos.

Naquela época, a Fide separava a elite do xadrez em duas categorias: mestre internacional e grande mestre internacional (hoje em dia, abaixo dessas ainda há mestre Fide e candidato a mestre).

Numa analogia, são como as faixas nas artes marciais. Alcançá-las demanda cumprir certos requisitos e desempenho compatível com os melhores do esporte. No Brasil dos anos 60, ninguém tinha a faixa preta (na Argentina havia seis grandes mestres, entre os quais três estrangeiros naturalizados).

Com o objetivo de se tornar grande mestre e campeão do mundo, Mequinho se dedicou de forma exclusiva ao xadrez a partir de 1970, embora muito antes disso já não pensasse em outra coisa.

Chegou à primeira meta em 1972, no Torneio Internacional de Hastings (Inglaterra), o mais tradicional do xadrez e um dos mais prestigiosos de então. Somou os pontos necessários ao empatar com o romeno Victor Ciocaltea no dia 13 de janeiro, aos 19 anos (seu novo status só foi reconhecido pela Fide no fim do ano, mas era mera formalidade).

Reprodução da capa da Folha de S.Paulo de 14 de janeiro de 1972, que celebrava a conquista do enxadrista brasileiro Mequinho, grande mestre do xadrez
Folha de S.Paulo de 14 de janeiro de 1972 destacava em sua capa o feito obtido por Mequinho na véspera, em Hastings, na Inglaterra - Reprodução - 14.jan.72/Folha de S.Paulo

"Senti a maior emoção da minha vida e me lembrei do povo brasileiro, lá do outro lado do Atlântico. A minha vitória eu ofereço a todos os brasileiros", declarou na época o recém-grande mestre. E fez um pedido: "Quero muita gente no aeroporto. Eu gosto do calor humano, da minha gente, meus amigos".

Foi atendido. Ao desembarcar no Galeão no dia 18 de janeiro, encontrou inúmeros torcedores do Flamengo (clube pelo qual ele jogava) e estudantes da Universidade Gama Filho (onde era professor), além de diversos enxadristas. Faixas de felicitações decoravam o saguão e percussionistas da Mangueira garantiam o samba.

Mequinho desfilou pelo Rio num carro dos bombeiros. Veículos particulares e ônibus formaram o cortejo, enquanto aqui e ali estourava um rojão. Mas a comitiva só parou o trânsito na avenida Rio Branco, e em nenhum momento houve a chuva de papéis picados que homenageou os tricampeões do futebol.

Dois dias depois, o enxadrista deu o pontapé inicial de Flamengo x Vasco no Maracanã, em partida válida pelo Torneio de Verão. Foi ovacionado por um público de mais de 29 mil pagantes.

Mequinho é recepcionado no Rio de Janeiro por torcedores do Flamengo depois de triunfar no Torneio Memorial Bora Kostic, na Iugoslávia, em 1971 - Acervo - 10.out.71/Folhapress

Sua fama, que já era grande, cresceu ainda mais. Figura frequente nos jornais, nas revistas e nos programas de televisão, incluindo o do Chacrinha, Mequinho se tornou uma celebridade.

Raul Seixas fala do enxadrista em sua música "Super-Heróis", de 1974. O poeta Carlos Drummond de Andrade, em coluna no Jornal do Brasil, reclamou da falta de destaque à literatura e da "sobra dos aplausos distribuídos a Pelé, Mequinho". Naquela época, o atleta do século, o grande mestre e o piloto Emerson Fittipaldi constituíam a trindade do esporte brasileiro.

Em 1973, Mequinho venceu o Torneio Interzonal, que era uma espécie de primeira fase do campeonato mundial e atraía os melhores enxadristas do planeta. Três anos depois, repetiu o feito.

No entanto, nunca conseguiu progredir no mata-mata que antecede a disputa pelo título de campeão do mundo.

Depois de Mequinho, o Brasil voltou a ter um grande mestre somente em 1986. Hoje são 14 ao todo, o mesmo que a Islândia, com seus 366 mil habitantes.

Isto é Mequinho

- 1964: Campeão de Pelotas
- 1964: Campeão do Rio Grande do Sul
- 1965: Campeão Brasileiro
- 1967: Campeão do Zonal Sul-Americano
- 1972: Grande mestre internacional
- 1973: Campeão do Interzonal
- 1976: Campeão do Interzonal

Principais livros*

- "Como Jesus Cristo Salvou A Minha Vida"
- "Mequinho – O Xadrez de Um Grande Mestre"
- "Partidas e Finais de Xadrez do Grande Mestre Mequinho"

*os livros podem ser encontrados no site https://xadreztotal.com.br/gmmecking/

O jornalista Uirá Machado está escrevendo a biografia de Mequinho pela editora Todavia.

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