Descrição de chapéu basquete

Bill Russell, morto aos 88, fugiu da pobreza e do racismo pelo basquete

Atleta mais vitorioso da NBA, ele também foi o primeiro técnico negro em uma liga profissional nos EUA

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São Paulo

Certa vez perguntaram a Bill Russell, morto no domingo (31) aos 88 anos, se a Medalha Presidencial pela Liberdade, honraria do governo norte-americano, concedida por Barack Obama, em 2011, tinha sido a principal premiação recebida pelo ex-astro da NBA. Russell, dono da carreira mais vitoriosa do basquete dos Estados Unidos, afirmou que fora o segundo maior prêmio de sua vida. Então, qual seria o mais importante?

"Aos 77 anos, meu pai me disse: ‘Tenho muito orgulho de você ser meu filho", contou o ex-pivô do Boston Celtics. "Meu pai é meu herói. E não consigo perceber nada maior do que isso."

Em uma época de segregacionismo, a união familiar foi um dos principais trunfos para o garoto William Russell não naufragar durante os anos difíceis da infância. Bill nasceu em 1934, em West Monroe, na Louisiana, um dos Estados mais racistas dos EUA. O preconceito contra os negros era tão forte que esses eram obrigados a esperar em fila para serem atendidos no comércio. Os brancos sempre passavam na frente.

De terno cinza e camisa azul, Russell levanta um dos braços e acena com uma medalha no pescoço
Bill Russell posa com a Medalha Presidencial pela Liberdade, concedida a ele por Barack Obama, em 2011 - Reuters

Certa vez, Charlie, pai de Bill, desistiu de esperar e quis procurar outro local para abastecer o carro. Foi impedido pelo proprietário do estabelecimento, que lhe apontou uma arma e o obrigou a comprar lá. Prendada, a mãe, Katie, em outra oportunidade, costurou um belo tailleur. Ao sair na rua, orgulhosa com a nova vestimenta, foi abordada por um policial que a obrigou voltar para casa para se trocar. Causava estranheza às pessoas ver uma negra passeando com "roupa de branca".

A revolta contra tudo isso era acompanhada pelo crescimento físico do garoto. Em busca de melhores condições de vida, a família mudou-se então para Oakland, na Califórnia. Bill dizia que, se tivesse ficado na Louisiana, teria matado alguém. Ou teria sido morto.

Muito ligado à mãe e afastado do severo pai, o menino sofreu o primeiro choque na infância com a morte de Katie. Ele tinha apenas 12 anos. Foi quando Charlie resolveu abandonar o emprego de caminhoneiro para trabalhar como operário em uma fábrica de aço. Tudo para ficar mais próximo dos filhos. Perdeu dinheiro. Ganhou a família.

Alto —​atingiria os 2,08 metros— Bill foi direcionado ao basquete, mas não se destacou durante os anos do ensino médio. Tanto é que nenhuma universidade fez convite para que o jovem integrasse sua equipe. A exceção foi Hal DeJulio, olheiro da Universidade de San Francisco, que viu potencial no espigado adolescente, mas com pobres fundamentos.

Bill percebeu que o esporte seria o caminho para fugir da pobreza, da violência e do racismo. Direcionou sua energia a treinar e se aprimorar. Os resultados começaram a aparecer. Em 1955 e 1956, já como destaque da equipe, levou San Francisco ao bicampeonato da NCAA, a liga norte-americana de basquete universitário. Neste ano, como prêmio, foi convocado para defender os Estados Unidos na Olimpíada de Melbourne, na Austrália.

Com Russell, K.C. Jones e Carl Cain, a seleção nunca havia tido tantos negros no elenco. Companheiros de time em San Francisco, Jones e Russell reeditaram contra a Bulgária, na segunda fase, jogada do basquete universitário. O armador lançou a bola e, com um salto espetacular, o pivô cravou na cesta. Atônitos, os árbitros, que nunca tinham visto nada semelhante, anularam o lance. No intervalo, após reclamação do técnico Gerald Tucker, os pontos foram validados.

Muito antes do Dream Team de Barcelona-1992, os Estados Unidos mostraram tal domínio que surraram seus adversários com média de 53,5 pontos de vantagem por partida. Em tempos de Guerra Fria, o jogo decisivo foi contra a União Soviética, que chamava a atenção pelo pivô Janis Kruminch, de 2,18 metros. Mas foi um passeio: 89 a 55 para os Estados Unidos, tetracampeões do torneio olímpico (já haviam triunfado em 1936, 1948 e 1952).

Naquele ano, o draft, a seleção dos calouros da NBA, definiu muito do futuro da liga. Com uma hábil negociação, o técnico Red Auerbach, do Boston Celtics, selecionou Russell, K.C. Jones e Tom Heinsohn. Estava montada a espinha dorsal da equipe mais vencedora da história da liga.

Com o pivô em quadra, o time de Massachusetts deixou de ser figurante para se tornar a principal franquia da NBA. Os Celtics ganharam o primeiro troféu em 1957, na temporada de estreia de Russell, contra o St. Louis Hawks, de Bob Pettit, melhor jogador da temporada anterior. Era o início de uma dinastia. Nos anos seguintes, em 12 campeonatos disputados, Russell colecionou mais dez anéis de campeão, marca nunca atingida por outro jogador. Sua rivalidade com Wilt Chamberlain trouxe nova empolgação à liga, mas o pivô rival só conquistou um título enquanto Russell esteve em quadra.

Durante oito anos seguidos (1959 a 1966), o Boston Celtics não teve sua hegemonia quebrada, façanha também única. Em cinco desses campeonatos, o time derrotou na decisão seu maior rival, o Minneapolis (e depois Los Angeles) Lakers. Nas duas últimas conquistas (1968 e 1969), Russell acumulou as funções de técnico e jogador. Com o cargo, tornou-se o primeiro negro a comandar uma equipe de liga profissional nos Estados Unidos.

Militante pela igualdade, ele apoiou a recusa do boxeador Muhammad Ali em servir às tropas norte-americanas na Guerra do Vietnã. Certa vez se negou a jogar amistoso em Lexington. Na véspera, o dono de um restaurante havia se recusado a servir refeição a ele e a seus colegas de time.

Apesar dos combates raciais, sempre reconheceu as portas abertas a ele por brancos, como Walter Brown, dono dos Celtics, que o contratou, e Red Auerbach, treinador do Boston, que o indicou como sucessor no comando da equipe. Foi Auerbach, aliás, quem não teve dúvida em escalar Willie Naulls no lugar de Heinsohn, quando o ala se machucou. Era a primeira vez que uma equipe da NBA iniciava uma partida contanto só com jogadores negros.

Russell foi eleito o melhor jogador da NBA em cinco temporadas. Esteve em 12 Jogos das Estrelas, festa que reúne anualmente os principais atletas da liga. Em 1970, integrou a seleção dos melhores jogadores no aniversário de 25 anos da NBA. Manteve o posto nas festividades de 35 anos do torneio. Em 1996, na enquete dos 50 melhores atletas da história da NBA, lá estava Russell de novo na lista. Apenas quatro jogadores figuraram em todas essas relações.

Em 1969, no último ano em que jogou, a NBA criou premiação para o melhor atleta das finais. Campeão, ele viu o prêmio ficar com o armador Jerry West, do LA Lakers. Quarenta anos depois, esse troféu, que nunca foi parar nas mãos de Russell, recebeu o seu nome.

Outra honraria da qual muito se orgulhava foi acompanhar o sucesso da filha. Quando se separou da primeira mulher, surpreendeu-se com a decisão de Karen, de 11 anos, de viver com o pai. Os irmãos William Jr. e Jacob decidiram ficar com a mãe. Decisão que pesaria no bolso. "Ela me retirou da aposentadoria três vezes", brincava o pai, referindo-se às dificuldades em pagar os estudos da filha, que cursou direito na prestigiosa Universidade de Harvard.

Anos depois, já com Karen como uma destacada advogada, Russell teve a chance de conhecer dois presidentes dos Estados Unidos, Bill Clinton e Barack Obama. Ambos o cumprimentaram como o "pai de Karen Russell". De certa forma, era um ciclo que se fechava.

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