Qatar importa torcedores do Líbano para apoiar sua seleção na Copa do Mundo

Equipe anfitriã encerrou sua participação com zero ponto, mas teve barulho na arquibancada

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James Montague
Doha (Qatar) | The New York Times

No meio do segundo tempo da partida do Qatar contra o Senegal na Copa do Mundo, a bateria parou quando um homem com um chapéu de balde e óculos escuros se levantou e pediu silêncio.

Momentos antes, uma parte da multidão –mais de mil pessoas, quase todos homens vestindo camisetas bordô idênticas com a palavra "Qatar" em inglês e árabe– cantava em uníssono sob a direção de quatro chefes de torcida. Mas o mar de homens entendeu o que era esperado, seguiu a ordem e caiu em estranho silêncio enquanto o barulho do jogo girava em torno deles no estádio Al Thumama.

Então, um sinal foi feito. E a multidão explodiu de volta à vida.

"Toca, Bordô!", eles entoavam sem parar em árabe, uma referência ao apelido da seleção do Qatar. Os homens deram os braços em longas filas e saltaram. O chão embaixo deles tremeu.

Torcedores apoiam o Qatar no duelo com a Holanda - Albert Gea/Reuters

A cena lembrava mais os estádios de futebol da América do Sul e da Europa do que os do Qatar, e a torcida evocava a dos ultras, uma cultura de torcedores de futebol altamente organizada com raízes na Itália, que pode ser encontrada em todo o mundo, inclusive no norte da África e no Oriente Médio.

Esse era o ponto. O barulho da torcida encheu o estádio, como cinco dias antes, durante a estreia do Qatar contra o Equador. Seus números transmitiam força. Sua energia implacável era contagiante. Mas a arte corporal em muitos deles os denunciava.

As tatuagens, que são extremamente raras e altamente reprovadas nas sociedades do Golfo, pareciam sugerir que os torcedores não eram do Qatar. Então, quem eram eles? E de onde vieram?

Som importado

O plano foi traçado no início de 2022, quando a Copa do Mundo finalmente se aproximava. O Qatar tem sido alvo de críticas desde que conquistou o direito de sediar a Copa: por causa de uma votação corrompida que o decidiu, pelo tratamento dado aos trabalhadores migrantes, pela capacidade do pequeno país de receber e abrigar mais de um milhão de visitantes. Mas no fundo também havia outra crítica comum: a de que o país não tinha cultura futebolística.

O Qatar nunca se classificou para uma Copa do Mundo por seus méritos. A Qatar Stars League é uma das mais ricas da região, com estádios climatizados de última geração. Mas o público para times como Al Sadd e Al Rayyan costuma chegar às centenas, não aos milhares, de pessoas. Quem lotaria os estádios nos jogos do Qatar, perguntavam-se os organizadores? Quem forneceria a trilha sonora?

A resposta foi explorar a já fértil cultura dos ultras da região e importá-la.

Mas essa mesma cultura dificilmente se encaixa na realidade comercializada da Copa do Mundo do Qatar. O código da cultura ultra é antagônico, profundamente antiautoritário e vive constante conflito com a polícia e a mídia.

No Oriente Médio e no norte da África, os ultras também têm influência política: os ultras egípcios desempenharam um papel fundamental na Primavera Árabe de 2011, que derrubou o presidente Hosni Mubarak, e seu poder e popularidade nas ruas eram tamanhos que os ultras foram barrados por Abdel-Fattah el-Sissi depois que ele tomou o poder com um golpe.

Arquibancadas não ficam cheias na liga do Qatar - Ibraheem Al Omari - 2.out.22/Reuters

As canções criadas nas arquibancadas de Tunísia, Argélia, Marrocos e Líbano também serviram de trilha sonora para protestos antigovernamentais. Mas dentro dos estádios elas podem preencher até os espaços mais estéreis com paixão, cor e som.

Assim, em abril, foi organizado um evento-teste em Beirute, capital do Líbano. Centenas de estudantes libaneses e torcedores de um clube local, o Nejmeh, foram recrutados para fazer um filme de prova de conceito no estádio Camille Chamoun Sports City, recriando a atmosfera que um grupo ultra pode oferecer. O vídeo mostra centenas de torcedores cantando, exibindo faixas e soltando fogos.

Um "capo", termo usado para o torcedor que comanda os cânticos, foi levado do principal grupo de ultras do clube turco Galatasaray para dar a direção. O Galatasaray também foi identificado de propósito, por ter uma das cenas ultras mais respeitadas do mundo. Mas os libaneses disseram que não precisavam de orientação.

"Não! Nós mostramos a eles!", disse um torcedor ultra libanês na última sexta-feira (25). Ele se recusou a dar seu nome completo, prática comum na cena ultra, e se irritou com a ideia de que precisava ser ensinado a organizar um grupo de torcedores radicais.

O vídeo impressionou as pessoas certas em Doha. Pelo método boca a boca, foi oferecido aos jovens torcedores libaneses um acordo extraordinário: voos gratuitos, acomodação, ingressos para jogos e alimentação, além de uma pequena bolsa, para levar um pouco da cultura ultra aos jogos da Copa do Mundo do Qatar. Os fãs chegaram em meados de outubro para ensaiar suas ações coreografadas e praticar seus cantos recém-escritos. E para aprender o hino nacional do Qatar.

Participar do torneio seria uma experiência inalcançável para a maioria dos torcedores comuns do mundo árabe. O Líbano, por exemplo, está em profunda crise econômica. Segundo o Banco Mundial, o desemprego entre os jovens é de 30%. Milhares de cidadãos estão fugindo do país. Sem a ajuda do Qatar, quase nenhum dos homens vestindo camisetas bordô teria condições de assistir aos jogos no Golfo.

Ir a uma Copa do Mundo é um sonho, disse o torcedor dos ultras libaneses. Mas não foram apenas eles que se juntaram ao esforço: o grupo de cerca de 1.500 torcedores também conta egípcios, argelinos e alguns sírios. O dinheiro, segundo o torcedor ultra, não foi o único fator motivador.

"É nosso dever apoiar um país árabe", afirmou. "Nós compartilhamos a mesma língua. Compartilhamos a mesma cultura. Somos dedos da mesma mão. Queremos mostrar ao mundo algo especial. Você verá algo especial."

Nas arquibancadas

No pontapé inicial no estádio Al Thumama na sexta-feira, os 1.500 ultras adotivos do Qatar se reuniram em sua seção designada atrás de um dos gols, com camisetas bordô idênticas: "Qatar" na frente, "Todos por Al Annabi" nas costas. O hino nacional tocou, e os ultras o cantaram como se fosse deles. Quando terminou, os capos libaneses bateram seus tambores e lideraram os ultras em um "aplauso islandês".

"O povo do Qatar realmente não apoia o time assim", disse Abdullah Aziz al-Khalaf, 27, gerente de recursos humanos do Qatar, que observava de pé no saguão o desempenho dos ultras com uma mistura de orgulho e perplexidade. "Porque no Qatar não vamos muito às partidas."

Outro qatariano, um estudante de 16 anos e torcedor do Al Rayyan, Ali al-Samikh aprovou o ambiente. "Eu gosto disso", disse ele. "É emocionante!"

Ele gostaria de ficar lá com os outros?

"Não, não quero", respondeu, balançando a cabeça com um sorriso tímido.

Os organizadores da Copa do Mundo do Qatar não responderam a perguntas sobre os torcedores, ou sobre os esforços para identificá-los e trazê-los para o torneio. Um homem vestindo uma camisa polo com o logotipo da Aspire Academy, o projeto bilionário de cultivo de talentos do Qatar, filmou a multidão durante 90 minutos.

No entanto, a paixão parecia real. A decepção também, já que o Senegal marcou duas vezes. Na arquibancada, com intervalos de algumas fileiras, líderes de torcida com camisetas brancas gritavam e exortavam os fiéis a cantar mais forte, imitando um fenômeno frequentemente visto em multidões de ultras na Itália, na Alemanha e na Marrocos: você canta mais alto e faz mais barulho quando está perdendo. Os tambores batem mais alto. Os cânticos voltaram.

Toda a multidão, não apenas aqueles atrás do gol, finalmente ganhou vida quando Mohammed Muntari marcou o primeiro gol do Qatar em uma partida da Copa do Mundo. Mas nem todos entenderam o recado: em meio às comemorações pulsantes, um segurança correu para a frente numa tentativa inútil de pedir aos ultras que se sentassem. Mas a alegria durou pouco quando o Senegal marcou o terceiro gol. O jogo terminou em 3 a 1. Poucas horas depois, o Qatar se tornou o primeiro país a ser eliminado da Copa do Mundo.

Nesta terça (29), perdeu por 2 a 0 para a Holanda e fechou sua participação com três derrotas em três jogos.

"Estou triste, é claro", disse o egípcio Ahmed. Ele se juntou ao grupo no jogo e usava a mesma camiseta bordô característica, mas disse que na verdade mora no Qatar.

"Somos um grupo de árabes trabalhando aqui para apoiar o Qatar", disse ele, acrescentando: "Se estivéssemos trabalhando na Inglaterra, também apoiaríamos a Inglaterra".

A multidão se dissolveu. Os ultras do Qatar só estiveram no país para a fase eliminatória. A maioria deles fez as malas para voar ao Líbano após o jogo contra os holandeses. Mas antes de partir fizeram seu barulho mais uma vez.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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