Descrição de chapéu tênis de mesa

Objetivo é continuar vivendo do tênis de mesa, diz Luca Kumahara, primeiro atleta trans da modalidade

Atleta olímpico fez sua estreia no masculino em dezembro e convive com dúvidas sobre potencial na nova categoria

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São Paulo

Talento precoce no tênis de mesa, o paulista Luca Kumahara, 28, está sendo obrigado a rever a sua trajetória no esporte.

Com três Olimpíadas e medalhas em Jogos Pan-Americanos no currículo, Kumahara é também o primeiro homem trans da modalidade.

Mesa-tenista Luca Kumahara, primeiro atleta trans da modalidade, no CER (Centro Esportivo Recreativo) Bochófilo São José, em São Caetano do Sul
Mesa-tenista Luca Kumahara, primeiro atleta trans da modalidade, no CER (Centro Esportivo Recreativo) Bochófilo São José, em São Caetano do Sul - Gabriel Cabral - 2.fev.2024/Folhapress

Imerso desde cedo no universo esportivo, ele conta que, embora se identificasse com o gênero masculino já na infância, por muito tempo nem pensava a respeito da transição.

Até que, em meados de 2019, passou a ter contato com vídeos no YouTube sobre o tratamento hormonal com testosterona e decidiu que era aquilo que queria para si.

"Para homens trans, tanto na sociedade como no esporte, é muito mais fácil do que para as mulheres trans, infelizmente", diz Kumahara à Folha.

A estreia na categoria masculina aconteceu no fim do ano passado. Kumahara diz que a principal diferença que sentiu foi no saque, que, segundo ele, é mais 'roubado' entre os homens.

E, apesar de difícil emocionalmente, serviu para que o mesa-tenista conseguisse enxergar com mais clareza o caminho que precisa seguir para continuar vivendo do esporte. "Não vou só me focar em um objetivo, sem olhar se a minha vida está indo para frente."

Quando você começou a pensar em fazer a transição de gênero? Sempre me identifiquei com o gênero masculino, desde as minhas primeiras memórias. Mas, como entrei muito cedo para o esporte, que é 100% binário, separado em feminino e masculino, fiquei muito imerso nesse mundo e não enxergava como uma possibilidade fazer a transição de gênero. Quando eu digo fazer a transição, é falar para as pessoas como me identifico. Muita gente acaba tendo uma ideia equivocada de que a transição envolve procedimentos, e, na verdade, ela acontece quando você assume outro gênero, não precisa passar por cirurgia, por mudança de nome, por tratamento hormonal, você só precisa assumir.

O que te fez passar a pensar a respeito? Em 2019, comecei a assistir aos vídeos de um youtuber trans que falava sobre o processo dele, e foi a partir daí que tive contato com mais informações sobre o assunto. Ouvi ele falando sobre o tratamento hormonal com testosterona, as mudanças que traziam, principalmente estéticas, e pensei que queria muito fazer. Foi quando comecei a traçar um plano.

Como foi o planejamento? Na época estava voltando para a seleção, após um período em que fiquei bastante desanimado e quase parei de jogar. Só que voltei melhor do que antes, e foi um momento importante para mim profissionalmente por conta das Olimpíadas de Tóquio. Como 2020 estava perto, decidi esperar e tracei o plano de tentar jogar no feminino até Paris e depois iniciar o tratamento.

O que te fez antecipar os planos? Depois de Tóquio, a comissão técnica foi renovada e vi a seleção feminina com um técnico que estava indo na mesma linha de trabalho que os atletas. Mas a confederação brasileira decidiu trocar o técnico e não concordamos. Tentamos argumentar, mas não voltaram atrás. Até então, estava priorizando minha carreira no feminino, até porque, com o tratamento, daria positivo para o doping na categoria. Como a troca de treinador me desanimou muito, deixou de fazer sentido adiar uma coisa tão importante do lado pessoal.

Sofreu preconceito pela decisão? Até agora, foi tudo muito tranquilo. Sempre falo que para os homens trans, tanto na sociedade como no esporte, é muito mais fácil do que para as mulheres trans, infelizmente. Foi tudo muito tranquilo em relação ao patrocinador, à confederação. Apesar de ter tido problema com a confederação em relação à troca de técnico, sobre a transição foi tudo muito bom, desde o início eles me apoiaram bastante.

Como foi sua estreia no masculino no Campeonato Brasileiro, em dezembro de 2023? Foi uma estreia bem complicada emocionalmente. Não achei que ia ser tão diferente, porque já vivi tanta coisa no esporte, e achava que conseguiria lidar com as emoções, mas elas eram muito diferentes. O motivo, a origem das emoções era muito diferente de todas as outras coisas que passei na vida, por isso foi tão difícil de lidar com elas. O primeiro jogo, na teoria, não era para eu ter me complicado tanto, mas foi muito disputado. Foi bem difícil mesmo, mas, pelo menos, começou. Esse passo foi mais importante do que imaginava.

Por quê? Não estava a fim de competir ainda, queria esperar mais um pouco, mas foi importante para ver o que preciso fazer, o caminho que preciso tomar.

Qual é esse caminho? Principalmente em termos de planejamento de competições. O campeonato paulista, por exemplo, não jogo faz muito tempo, quem está na seleção geralmente não joga, são torneios em que as condições normalmente não são muito boas, a mesa, o local, a bolinha. Mas, depois do Brasileiro, me dei conta que preciso ser humilde e reconhecer que preciso disso, vai ser um passo importante. Tenho que estar disposto a isso se quiser melhorar.

O sr. sentiu muita diferença em relação aos jogos no feminino? Senti diferença no saque, que é um fator determinante para o jogo. No masculino, o saque é mais ‘roubado’, como falamos no esporte, em que os jogadores não seguem as regras à risca. São aspectos como a altura em que a mão tem de estar posicionada, a posição do corpo, a direção da bola. Não posso nem falar de competência, de o saque ser melhor no masculino, porque, na verdade, ele é ‘roubado’. Se as jogadoras se valessem da mesma estratégia, talvez o saque teria a mesma eficiência. Acho que tem a questão da confiança masculina e da cobrança em cima das meninas de sempre fazerem tudo certinho, de aspectos mais sociais mesmo. Vou ter que aprender a lidar com isso, não só para conseguir recepcionar, mas para não passar raiva.

Ainda vê alguma possibilidade de estar em Paris-2024? Paris é impossível, a equipe já está praticamente fechada e, mesmo que não estivesse, existem muitos jogadores que estariam na minha frente. Tenho que ser muito realista em relação à expectativa.

E pensando em Los Angeles-2028? Tenho que pensar primeiro em tentar estar na seleção, porque vejo que é algo difícil. Hoje é mais um sonho do que um objetivo. Meu objetivo a curto e médio prazo é continuar vivendo de ser jogador de tênis de mesa, porque agora começa tudo de novo. Se um clube me procura para jogar e me pergunta quanto quero receber, não sei dizer, porque não sei o que posso oferecer para eles em termos de resultado. No feminino, sabia o que poderia oferecer, no masculino, não. Esse é o maior desafio para que eu consiga continuar vivendo como um jogador de tênis de mesa. É algo que quero muito, mas as contas têm que fechar. Não vou só me focar em um objetivo, sem olhar se a minha vida está indo para frente.

Raio-X | Luca Kumahara, 28

Natural de São Paulo, Luca Kumahara é o primeiro mesa-tenista trans da modalidade. Fez sua estreia pela seleção brasileira adulta com 13 anos e participou das Olimpíadas de Londres-2012, Rio-2016 e Tóquio 2020. Ganhou a prata por equipes e o bronze no individual nos Jogos Pan-Americanos de Toronto-2015.

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