|
A
filosofia, hoje apenas uma disciplina universitária, foi
a arte do universal ou da universalização possível
da vida humana, ao mesmo tempo necessária e impossível
(19/12/1999)
Um
convite à falsificação
BENTO PRADO JR.
Todas as vezes que o filósofo profissional (todos nós,
professores de filosofia) ouve falar da proximidade entre vida e
filosofia, espontaneamente dá de ombros ou franze as sobrancelhas.
Um mal-estar se apodera dele, diante do que lhe parece mero infantilismo
ou ignorância do caráter técnico e essencialmente
abstrato da obra filosófica. O que é tolerável
no aluno do secundário (a quem se poderá até
mesmo recomendar a leitura de "O Mito de Sísifo"
de Camus com a esperança de levá-lo imperceptivelmente
até outro tipo de leitura: "O Sofista" de Platão
ou a "Monadologia" de Leibniz) já não o
será no universitário, de quem se espera maior compostura
e "seriedade". A filosofia, decididamente, nada tem a
ver com as inquietações mais ou menos narcísicas
do adolescente. É certo que essa pedagogia é indispensável
e que o aprendizado da filosofia exige uma ascese intelectual e
pessoal. Mas lendo, recentemente, um livro de um historiador notável,
especialista em filosofia antiga e medieval, fui obrigado a algumas
reflexões que estavam distantes de mim. Falo de Pierre Hadot,
professor no Collège de France, que vim a conhecer, de maneira
curiosamente oblíqua, por meu colega Julian Cass, da pós-graduação
em filosofia da Universidade Federal São Carlos, por meio
da tradução americana de alguns de seus escritos.
Livro que me veio recomendado por meu amigo com uma ênfase
tanto maior quanto mais avesso ao estilo do livro em questão
era o estilo de sua própria formação filosófica
na Inglaterra, toda centrada na lógica e na epistemologia.
Invisíveis
Mas o que poderiam oferecer de surpreendente ou de inquietante esses
escritos tão clássicos (no tema como no método),
que, no entanto, provocaram vivo interesse em Michel Foucault (cfe.
a introdução de Davidson)? Não é, com
efeito, especialmente revolucionário tratar os textos antigos
com os cuidados da filologia, fazendo com que a interpretação
filosófica venha depois da identificação dos
códigos estritos que presidiram a sua produção.
Tais códigos, certamente claros para os leitores contemporâneos
dos autores, não estão visíveis para nós
na superfície dos textos. É preciso, previamente,
escavar "as regras, as formas, os modelos de discurso"
que dão o horizonte do pensamento do autor. Regras, formas
e modelos de discurso que sofrem fundas modificações
devido à longa duração. Tomemos apenas um exemplo,
retirado dos tempos modernos. Podemos, e o fazemos constantemente,
ler em continuidade os "Ensaios" de Montaigne, as "Meditações"
de Descartes e os "Devaneios" de Rousseau, perseguindo
as transformações do moderno Sujeito pensante. Mas
só podemos fazê-lo corretamente reconhecendo que cada
um desses textos ou inventa um novo gênero (Montaigne e Rousseau
são inventores de um gênero novo, como Platão
com o "Diálogo") ou o redefine (como Descartes).
A cada gênero, seu "sujeito". Como não somos
capazes, às vezes, de decifrar de imediato a figura escondida
numa tapeçaria (uma paisagem que se revela, de certo ângulo,
um rosto humano), frequentemente "temos a impressão,
ao ler autores antigos, que escrevem mal, que a sequência
das idéias carece de coerência e de conexão.
Mas é exatamente porque a verdadeira figura nos escapa que
não percebemos a forma que torna todos os detalhes necessários...".
Ordem
a desordem
Diante dessa dificuldade (finalmente o bom senso nos indica: eles
não podem escrever tão mal assim!), somos tentados
a recorrer a instrumentos como a psicologia ou a psicanálise
para dar ordem a essa desordem, vendo no texto a expressão
de uma alma (atribulada ou desesperada, supomos então "ad
hoc", como a de Marco Aurélio em suas "Meditações",
que poderíamos imaginar, no entanto, estoicamente conformado
a sua dura condição de imperador romano) e deixando
de ver sua estrutura digamos retórica ou didática,
os mecanismos da composição literária antiga.
Grave, com efeito, é a confusão entre expressão
involuntária e composição refletida segundo
regras.
Mas a distância que nos separa desses textos é maior
ainda do que a agora sugerida. Pois esse código ou essa retórica
(a "gramática", digamos, da escrita teórica
na Antiguidade) só são compreensíveis no seio
das práticas e das instituições sociais que
as sustentam: um regime de articulação entre prática
e teoria que não é exatamente o que teorizamos e praticamos
hoje. Voltando a nosso ponto de partida, o próprio ensino
da filosofia não tem, nesses tempos diferentes, o mesmo sentido.
E aqui caminhamos numa direção diferente da apontada
por Derrida: o próprio estatuto do texto modificou-se desde
a Antiguidade, e Platão deve ser (aqui sim) tomado ao pé
da letra quando aponta a deficiência da escrita: ela é
muda, não responde a perguntas do leitor.
O ensino da filosofia é essencialmente oral, e a escrita,
apenas um aparelho auxiliar. E isso ainda é dizer pouco:
a própria aula, de viva voz, não é nada, se
não ensinar a "mudar a vida" do discípulo
(não se pensa, é claro, antes da modernidade, em "transformar
o mundo").
Um pensador antigo (pouco importa qual, aí todos são
iguais) adverte que será mau o marceneiro que apenas ensinar
os princípios da marcenaria. Pois o que se pede ao marceneiro
é que exerça sua "techné". Uma aula
de marcenaria não me ajuda a edificar minha casa, como uma
aula de filosofia, transmissão, digamos, de um saber ou de
um conhecimento "in abstracto", não modifica minha
vida, tornando-a boa, justa, feliz, isto é, humana e racional.
Hoje uma disciplina apenas universitária, de duvidosa cientificidade
(ou de segura não-cientificidade), a Filosofia foi a técnica
ou a arte do universal ou da universalização possível
da vida humana, ao mesmo tempo necessária e impossível,
já que irremediavelmente vinculada ao singular ou à
idiotia.
Tomemos a possível distância histórica no presente.
Nascido em 1922, P. Hadot foi exposto às influências
do marxismo, do existencialismo e da filosofia de Wittgenstein (foi
o primeiro francês a escrever sobre o pensador de Viena);
influências que deveriam torná-lo sensível ao
sentido real da prática filosófica. Isso não
impede que essa situação do autor (ou seja, a maneira
muito particular pela qual sua perspectiva teórica foi formada
pela cultura e pela sociedade presente) tenha sido ocasião
de um olhar objetivante sobre uma cultura e uma sociedade outra
e distante. Um pouco ao avesso da carreira do antropólogo,
descrita por Lévi-Strauss, para quem a compreensão
do outro implica uma dessolidarização consigo mesmo.
Confessemos, nós professores de filosofia, que nossa arte
é bem pouco refletida no presente. Toda minha simpatia ainda
vai para gente como Nietzsche e Wittgenstein, que consideravam nossa
profissão um terrível perigo e nossa situação
institucional, um convite à falsificação. O
que tem o ensino da filosofia, hoje, com o esforço de tornar-se
digno de viver? Haveria de comum, entre nosso discurso e o dos antigos,
mais do que mera homonímia?
Como o leitor, continuo desconfiando do "pathos" que anima
essa retórica que acabo de exibir, especialmente no jargão
da autenticidade. Mas não posso dormir sem desconfiar que
vai aí algo de Verdade.
Leia mais:Dois
estilos de Hegel
|
|